quarta-feira, 30 de julho de 2008

3. VAMOS DAR VOLTA E MEIA, MEIA VOLTA VAMOS DAR:

Andar em círculos, como na Ciranda Cirandinha[1], dar voltas e meia-voltas e depois terminar no mesmo lugar com a última meia volta dada, pois não parece haver para onde fugir dessa roda-viva e acaba-se chegando no mesmo lugar de antes. Andou-se em círculos, o anel de vidro quebrou, o amor que era doce se acabou. O que restou a esse homem fragmentado, possuidor de cacos de vidro e amores azedos? Resta apenas entrar na roda, dizer um verso bem bonito, dar adeus e ir-se embora (como poderia fazer o escritor).

O homem atual, inserido nesse roda mundo, nessa ciranda, muitas vezes nem sabe que está repetindo os passos dos seus antepassados, que também viveram cirandas mágicas que foram repassadas por gerações. Seria captar esse aspecto a função do olhar estrangeiro, de quem está de fora da ciranda. Não comprometido com a dança, pode notar os movimentos e até relacioná-los com uma origem. Quem sabe nas rodas místicas dos celtas? O estrangeiro não precisa construir identidades, mas pode mostrar como as nossas foram constituídas. Ver uma tradição escondida sob a pintura de milhares de épocas.

Dar a meia volta é voltar ao início, querer resgatar o que havia antes, a tradição (tida como amarra contra a liberdade e autonomia do homem moderno) que foi amaldiçoada pela modernidade:

A dinâmica da democracia moderna será a da corrosão progressiva dos conteúdos tradicionais, minados aos poucos pela idéia de auto-instituição, que a Revolução Francesa trouxera à baila com particular vigor. O princípio da liberdade consiste em fundar a lei sobre a vontade dos homens, subtraindo-a tanto quanto possível, portanto, à autoridade das tradições. (link Mancebo)

 

O termo tradição vem do latim traditio, que significa “acção de entregar ou dar (alguém ou alg. coisa); entrega, transmissão” (Torrinha, p.56). No dicionário de latim, tradição também representa: narração, narrativa[2]. É justamente através da narração tradicional, segundo Benjamin, que se transmite uma sabedoria, uma experiência que ajuda a manter uma identidade, uma coesão individual e coletiva. Então, com o fim da experiência, da criação (Erfahrung), também veio o fim da narração tradicional. No século XIX, no auge do capitalismo, no lugar da experiência foram gerados novos valores individuais, como a vivência, recriação (Erlebnis). Dentro desse aspecto, Benjamin explica que o romance (surgido com a modernidade) tomou o lugar vago da narrativa e se tornou uma forma de expressar essa nova experiência de si[3]. Isto é, suas constantes mudanças estruturais e seu hibridismo conseguem seguir o ritmo dessas sociedades em constante mudança e repensadas o tempo todo. Aí está a grande diferença entre a sociedade moderna e a tradicional, esta ultima não vive uma mudança constante.

Anthony Giddens argumenta que: ‘nas sociedades tradicionais, o passado é venerado e os símbolos são valorizados porque contêm e perpetuam a experiência de gerações. A tradição é um meio de lidar com o tempo e o espaço, inserindo qualquer atividade ou experiência particular na continuidade do passado, presente e futuro, os quais, por sua vez, são estruturados por práticas sociais recorrentes (Giddens, 1990, pp. 37-8)’(link Hall).

 

Enquanto Benjamin vê o resgate da tradição para um diálogo com a modernidade como solução para os problemas da “crise da experiência”[4], ele também acredita que é preciso resgatar na figura da criança aquele que de fato pode experenciar algo. Por que a criança e não o adulto?

O adulto, de acordo com Benjamin em Experiência, usa esta como uma máscara, sem, de fato, tê-la vivido. Já a criança tem a chance de viver essa experiência (o tempo de criação) através da brincadeira[5] e da fantasia. Ainda não adaptada ou sob as exigências do mundo adulto, a criança pode constituir um mundo de significação própria, mas ele é todo baseado nas suas pequenas e recentes experiências (são as únicas que conhece). Ou seja, enxerga a realidade como um laboratório de possibilidades. E é nela onde procura elementos e os retira do seu contexto (subverte a ordem estabelecida), trazendo-os para suas brincadeiras. Dessa forma, na maioria das vezes, reproduz o que vive na vida diária[6]. E não há um esgotamento porque a criança recorda, revive, reelabora e combina formas diversas sempre criando coisas novas. Ao inventar uma história, por exemplo, ela retira elementos das experiências vividas e as combina.

Não são as coisas que saltam das paginas em direção à criança que as vai imaginando – a própria criança penetra nas coisas durante o contemplar, como nuvem que se impregna do esplendor colorido desse mundo pictórico. Diante de seu livro ilustrado, a criança coloca em prática a arte dos taoístas consumados: vence a parede ilusória da superfície e, esgueirando-se por entre tecidos e bastidores coloridos, adentra um palco onde vive o conto maravilhoso. (Benjamin, 2002 a, p.69).

 

O adulto não consegue o mesmo porque a sua imaginação está adaptada à realidade e não quer questionar nem mudar as ordens das coisas para descobrir novos usos. Ou seja, não consegue combinar coisas e viver novas experiências. Seu sensorial está enfraquecido e não se sente capaz de fazer relações extra-sensoriais (que emanam dos objetos e alimentam a imaginação) como a criança faz entre objetos animados e inanimados, por exemplo.

A criança tem uma capacidade de retirar do que o adulto vê como comum algo mágico e propício para novas descobertas. Nesse aspecto, ela e o estrangeiro em suas andanças combinam. É na potência do olhar imaginativo da criança que, inclusive, um brinquedo se torna brinquedo:

 As crianças, com efeito, têm um particular prazer em visitar oficinas onde se trabalha visivelmente com coisas. Elas se sentem atraídas pelos detritos, onde quer que eles surjam (...) nesses detritos, elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas assume para elas, e só para elas. Com tais detritos, não imitam o mundo dos adultos, mas colocam os restos e resíduos em uma relação nova e original. Assim, as crianças constroem seu mundo de coisas, um microcosmos no macrocosmos. (Benjamin, 1996 c, p.238).

 

Walter Benjamin diz que o melhor olhar para analisar a realidade é o da câmera. Estando atendo ao seu objeto, sabe que a realidade não se esgota naquilo que é oferecido ao olhar. Por um fragmento pode-se abrir uma perspectiva para o mundo e um instante pode ser captado e eternizado novamente na memória. A criança também (tanto quanto os surrealistas) tem a capacidade de descobrir nos objetos a via para outra compreensão da realidade, um novo olhar crítico. Na brincadeira criança transforma objetos em outros, como, por exemplo, uma folha de papel em branco pode virar a carta a uma namorada ou uma mesa pode ser uma casinha para bonecas. Seu olhar penetra nas coisas e descobre nelas uma vida nova, uma nova função. Um pouco diferente do olhar do estrangeiro, que parece, em sua grande escala, restituir antigas ligações, significados passados.

A criança quando olha uma coisa não é para julgá-la seguindo padrões anteriores:

mas para perceber a diversidade de sentidos e as possíveis correspondências dadas nas cores. O artista e a criança intuem, fantasiam, criam, modo que expressão que colocam a possibilidade de reconstruir a experiência. É como se Benjamin percebesse na visão intuitiva da criança algo que prefigura a Erfahrung perdida pelo homem moderno, agora vivendo nos limites da Erlebnis. (link Schlesener[7]).

 

É preciso, então, voltar a ser criança para cair na roda, tentar virar o mundo. Se não conseguir isso, espera-se, pelo menos, que gere um verso bem bonito.

Nesse ponto entra, então, a função do escritor. Tanto para ele quanto para a criança ou para o estrangeiro há a revelação de um saber oculto vindo dos objetos banais. Através desse “dom” o artista questiona os sentidos dados na (pos)modernidade e confere um novo significado ao objeto, da mesma forma que faz a criança nas suas brincadeiras (luta entre mágico e racional, dionisíaco e apolíneo). Freud diz que a fantasia é para satisfazer a pessoa insatisfeita, “a pessoa feliz nunca fantasia”, isso explicaria porque o escritor, sobretudo após a modernidade, está numa constante busca para encontrar novas relações no que vê diante de si (é por isso escreve?)[8].

Se “essa faculdade de compor e combinar o antigo com o novo, tão facilmente observada nas brincadeiras infantis, é a base da atividade criadora no homem” (Souza, 2006 d, p.148) presente na criança e no escritor[9], então:

será que deveríamos procurar já na infância os primeiros traços de atividade imaginativa? (...)  Acaso não poderíamos dizer que ao brincar toda criança se comporta como um escritor criativo, pois cria um mundo próprio, ou melhor, reajusta os elementos de seu mundo de uma nova forma que lhe agrade? (Freud, 1976 a, p.149).

 

Freud supõe que a obra literária como devaneio é continuação ou substituto da brincadeira da criança por causa dos processos de imaginação que envolve tanto a criança quanto o escritor. Este cria mundo de fantasia que leva a sério e onde investe grande emoção, mas é capaz de separá-lo da realidade, como faz a criança ao brincar. Esta, ao crescer, parece renunciar à brincadeira, mas o adulto não abdica de um prazer já experimentado, como comenta Freud. Há uma troca no objeto de prazer. O adulto pode parar de brincar, de criar elos incomuns com objetos reais, mas continua fantasiando, construindo “castelos no ar”, através de devaneios. Na maioria das vezes estes são escondidos dos outros por vergonha. E justamente esse unheimlich é trazido à tona pela figura do estrangeiro, para que as pessoas possam contrapô-los a sua existência.

A narrativa tradicional (fonte de sabedoria que Benjamin quer tanto resgatar) surge como uma forma de fazer insurgir tanto no contador de histórias quanto naqueles que o ouvem, memórias e experiências que haviam há muito sido perdidas. Para o psicanalista está claro que a experiência infantil está associada a uma memória que pode reaparecer anos depois e gerar uma obra[10]:

Uma poderosa experiência no presente desperta no escritor criativo uma lembrança de uma experiência anterior (geralmente na sua infância), da qual se origina então um desejo que encontra realização na obra criativa. A própria obra revela elementos da ocasião motivadora do presente e da lembrança antiga. (Freud, 1976 a, p.156-7).



[1] Cantiga infantil:

Ciranda, Ciradinha, Vamos todos cirandar
Vamos dar a meia volta, Volta e meia vamos dar

O anel que tu me deste, Era vidro e se quebrou
O amor que tu me tinhas, Era doce e se acabou

Por isso dona (nome de uma das crianças), Entre no meio desta roda
Diga um verso bem bonito, Diga adeus e vá se embora

 

 

[2] Também pode significar traição, que é uma entrega.

[3] O romance psicológico, marca do alto modernismo, mostra para Freud como o escritor foi capaz de dividir seu ego e se auto-analisar em egos parciais e “personificar as correntes conflitantes de sua própria vida mental por vários heróis.” (Freud, 1976 a,  p.156).

 

[4] Benjamin vê como positivo a perda da experiência pois dela deve surgir um recomeço, uma reconstrução, gerando novas criações. Para se recuperar a experiencia é preciso buscar na modernidade objetos de reavivaçao da memoria, o que deve ser feito através do exercicio da arte, linguagem e experiência infantil.

 

[5] Vygotsky acredita que ao observar uma criança brincando, se é capaz de enxergar como funciona a criação, a construção da realidade.

 

[6] Muitos psicólgos infantis observam as crianças durante brincadeiras para poderem captar essas experiências reproduzidas e depois tratá-las.

[7] O mundo da criança em alguns escritos de Walter Benjamin: http://www.prograd.ufpr.br/nesef/artigos/novo/Anita.Benjamin.doc

 

[8]A fantasia também esta relacionada ao tempo e ao sujeito, possui data de validade. “O trabalho mental vincula-se a uma impressão atual, a alguma ocasião motivadora no presente que foi capaz de despertar um dos desejos principais do desejo. Dali, retrocede à lembrança de uma experiência anterior (geralmente da infância) na qual esse desejo foi realizado, criando uma situação referente ao futuro que representa a realização do desejo. O que se cria então é um devaneio ou fantasia, que encerra traços de sua origem a partir da ocasião que o provocou e a partir da lembrança.” (Freud, 1976 a, p.153).   

 

[9] A linguagem preservou o parentesco entre brincar e a criar literatura. Spielen, em alemão, é brincar e representar, como a palavra play em inglês.

 

[10] Essa poderia ser uma explicação para o fato dos traumas de infância estarem enraizados na memória enquanto outras situações são apenas vivenciadas (e depois descartadas) na vida adulta. O primeiro contato, a primeira impressão, comuns na infância, pois a criança não está costumada ao mundo ainda, podem criar várias e importantes memórias. Ver Édipo e o Anjo de Ruanet.

 

Nenhum comentário: