quarta-feira, 30 de julho de 2008

2.OLHARES ERRANTES:

O olhar se faz na modernidade, de acordo com Julio Diniz, em O olhar (do) estrangeiro – uma possível leitura de Clarice Lispector, impregnado daquele que olha, sem neutralidade, havendo, assim, uma confusão entre o eu que olha e o objeto olhado. Para não haver essa confusão seria necessário um olhar de fora, que não estivesse imerso ou acostumado com os objetos que olha e fosse capaz de captar algo novo (como faz o escritor ao observar o mundo em que vive). Algo como o olhar estrangeiro.

Normalmente o estrangeiro é morto, roubado, maltratado, ou divinizado (potencial mágico[1]) pelas sociedades em que ele aparece, de acordo com Van Gannep. Isso pode acontecer tanto por causa de um temor provocado pelo que é novo e diferente trazido pelo estrangeiro, quanto pelo que ele pode ressuscitar e que havia sido morto ou escondido (provoca o sentimento de unheimlich[2]). O medo surge porque o estrangeiro questiona quando não queremos o que escondemos[3].

Por isso o estrangeiro nos é importante hoje para pensarmos o que estamos vivendo e que Benjamin chamaria de “crise da experiência”. Vive-se um momento de anestesia provocado, talvez, pelo sentimento de melancolia do século retrasado, em que o homem se viu incapaz de substituir a perda de alguma coisa por si mesmo (como queriam os iluministas) e isso acabou gerando um estado de desânimo e uma revolta inconsciente autopunitiva[4]. O que antes era uma experienciação passou a ser, junto com a velocidade da modernidade, uma tentativa de evitar sentir, gerando, assim, os famosos silêncios pós-guerra que Benjamin comenta. O homem havia se condicionado a não mais experenciar[5] coisas que lhe trariam mais desgosto e quando estas surgiam numa grande dose, não sabiam como se colocar diante delas, classificá-las. A visão também foi danificada e não se consegue mais enxergar com olhos já acostumados a esse estado de primeiro plano. O olhar da figura do estrangeiro, da platéia que assiste[6], é importante porque é justamente nesse ponto que ele se desvirtua e consegue captar a profundidade da cena, pois não está inserido no palco que foi montado para esse homem sem experiência. São seus olhos, puxados ou azulados, que vão questionar e fazer um levantamento do que havia sido perdido.

Diniz também fala de uma perda no sentido das imagens que construíram nossa identidade e o olhar estrangeiro surge como forma de alcançar isso, sendo capaz de perceber o que não é visível aos que tem os olhos acostumados, aquilo que foi banalizado. É a busca de outra possibilidade, pois o estrangeiro consegue olhar as coisas com novidade e como se fosse pela primeira vez, resgatando algo original como faz a criança ao brincar com objetos dos pais:

inversamente simétrica a ordem social (...) estrangeiro olha o exterior de sua fronteira como necessidade de traduzir o visto, o vivido. Traduzir – adaptar, codificar, identificar, enfim, buscar sentido. Na busca da unidade perdida, o seu olhar recolhe o que na fala se apresenta como aprendizagem do verbo. (Diniz, p.30).

 

Baseando-me em Walter Benjamin, aproveito a figura desse estrangeiro como aquele que indica um caminho para que o homem consiga trabalhar os novos valores recebidos ou criar novos valores pós-perda. O estrangeiro será capaz de ter uma dupla leitura, já que não tem os olhos treinados e possui uma posição aberta a novas possibilidades (senão, nem teria saído de seu lugar de origem e se transformado nesse errante que é). Poderá enxergar o princípio oculto que se esconde por detrás de objetos, debaixo da ponta do iceberg[7] que o levará até as profundezas do conhecimento.

 Em A doutrina das semelhanças, Benjamin fala de uma dupla leitura para se atingir a base do iceberg. Toma como exemplo o astrólogo e o astrônomo para explicar esse tipo de leitura. O astrônomo é aquele que vai analisar as dimensões visíveis das estrelas com seus aparatos mecânicos e tentar entendê-las cientificamente. O astrólogo (muitas vezes acusado de ter perdido o senso) é aquele capaz de analisar e ainda “ouvir estrelas”. E o que dizem? Falam sobre o destino aos olhos do poeta[8]. Essa dupla leitura é fundamental para o resgate da perda inconsciente que traz o sentimento de melancolia no homem moderno. O estrangeiro, junto ao poeta, vão tentar “ouvir as estrelas” e traduzi-las em alguma linguagem diferente (quem sabe, inspiradas nas estrelas?).

Mesmo assim, é preciso saber o que fazer com essas identidades e não deixá-las serem mais no meio de outras tantas. Apesar de se estar tentando criar novas ou resgatar antigas identidades, mesmo que através de um “saudável e bondoso” sentimento de politicamente correto, estas identidades continuam num processo de desestabilização como as outras, provando que ainda há a fragmentação no homem e as rachaduras por debaixo do manto aparentemente estável da (pós)modernidade por onde elas escorrem. Stuart Hall chama esse descentramento de “crise de identidade”[9]. No meio dessa crise, pode-se dizer que as referências foram perdidas e que, mesmo assim, o homem luta de alguma forma resgatar essa perda, lutando, muitas vezes, contra os meios de massa, acusados de estarem dilapidando uma cultura outrora rica e produtiva, mas que todos sabem que também é uma criação do presente em fragmentação.

Mas, apesar do homem pós-moderno adotar várias identidades como sua, neste hibridismo cultural ele sempre estará buscando a sua identidade no seu regionalismo, pois como o olimpiano concebido por Edgar Morin, o sujeito pós-moderno, necessita de reconhecimento, mesmo que seja somente de sua cultura, ele necessita saber que ela está sendo preservada ou globalizada em outros Estados-nações (link Silva[10]).

 

Muitas vezes essas identidades que tanto busca para obter um reconhecimento (alheio ou de si, para que não se sinta à deriva novamente) parecem contraditórias entre si e incoerentes com o eu móvel da pós-modernidade (pois identidades são imóveis e restritivas)[11]. Julia Kristeva escreve que a falta de estabilidade em nós e a busca por identidades ou papéis nos torna nômades, estrangeiros para nós mesmos. O estrangeiro aqui ganha uma nova concepção: não é mais externo, não é aquele que vai indicar o caminho. O estrangeiro que aparece no texto Tocata e fuga para o estrangeiro, é aquele que vive em nós, a face oculta da nossa identidade. Surge uma hipótese: talvez vestidos desse estrangeiro que consigamos sair da lama da melancolia. Ele deve ser o que tem a lembrança do que se deixou, mas busca a sua felicidade no devir, na sua própria inconstância, alojado em si e na sua solidão, o ser ideal para o momento fragmentário em que vivemos. Kristeva nos apresenta o estrangeiro como o único ser capaz de andar por estas ruínas deixadas pela modernidade, pois não tem uma centralidade subjetiva, seu eu não pertence a ninguém nem a si mesmo, nem precisa fixar raízes (apenas o faz quando tem uma paixão e provisoriamente). Pode ser melancólico e sentir falta do que ficou para trás, do que perdeu, mas continua em frente, sentindo-se livre e sempre em busca de novos encontros. Ele tem uma biografia, uma vida feita de provas, porque os atos são acontecimentos, tudo ganha um peso de escolha, surpresa, ruptura, adaptação, estratagema. Não há o automatismo que Benjamin critica na sociedade moderna e ressaltado por Chaplin em Tempos Modernos. Isso permite que o estrangeiro tenha uma capacidade excepcional de análise:

Ao mesmo tempo não deixa de julgá-los um pouco limitados, cegos. Pois os seus anfitriões desdenhosos não possuem a distancia que ele possui, para se ver e para vê-los. O estrangeiro fortifica-se com esse intervalo que o separa dos outros e de si mesmo, dando-lhe um sentimento altivo, não por estar de posse da verdade, mas por relativizar a si próprio e aos demais, quando estes se encontram nas garras da rotina da monovalência. (Kristeva, p.14).

 

Apesar dessa possibilidade um tanto interessante de ser tornar estrangeiro ao invés de ficar dando identidades colhidas pelo olhar do estrangeiro ao homem em crise, há ainda aqueles que acreditam que possuem uma identidade atualmente. Stuart Hall explica que isso é uma ilusão: “Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora ‘narrativa do eu’.”(link Hall[12]). E cada vez mais, com os processos de tecnologia e informação mais dinâmicos e múltiplos, entramos em contato com mais identidades possíveis, tornando-nos híbridos, variáveis, temporários e podendo ser atingidos, modificados pelo mundo exterior ao invés de sermos os modificadores. “O sujeito pós-moderno, conceptualizado não tem uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma ‘celebração móvel’: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam.! (HALL, 1998, p.12-13)” (link Silva).

Esse estrangeiro, surgido no lugar do flanêur (atropelado pela modernidade)[13], mostra que finalmente a modernidade se fez na pós-modernidade. O homem pós-moderno recebeu o direito de desconstruir valores e criar seus novos valores, suas novas medidas, como queria o homem moderno. No entanto, isso ainda faz com que ele se sinta perdido, pois apesar de tanto ter desejado essa liberdade, quando ganha ela dá medo devido a sua proporção excessiva e incontrolável e a incerteza que carrega junto já que o que havia antes era ilusão, inclusive, o homem estar no controle de tudo.

A modernidade queria dar o controle ao homem e provou, no seu fim, que ele não tinha nem consciência de si, como poderia controlar e ser medida para alguma coisa se, inclusive, essa coisa não deve ser mais essencial e permanente? Como medir algo que se transforma o tempo todo?

Isso acabou gerando um movimento de retorno. Enquanto o homem moderno procurava desligar-se da tradição, que via como uma amarra ao seu desenvolvimento, o homem pós-moderno tenta desesperadamente resgatar de alguma forma os pontos deixados para trás. Através da figura do estrangeiro, ditar-se-iam novas possibilidades ou insurgiriam antigas que já foram acostumadas ao nosso olhar. O que nem o homem moderno nem o pós-moderno ainda conseguiram foi mudar a necessidade de representação que ainda corrói, fazendo procurar uma identidade (ou papel), que pode estar, inclusive, no passado.



[1]O potencial mágico que Van Gannep dá a umas das possibilidades de se servirem ao estrangeiro remete ao próprio conceito de misticismo que até hoje reveste a concepção de escritor, aquele que tem um DOM, uma INSPIRAÇAO na hora de criar.

 

[2] A figura do estrangeiro está associada ao sentimento de estranho que Freud classificou no seu ensaio O Estranho. Estranho para Freud é o assustador, aquilo que provoca medo e horror ao mesmo tempo que remete ao conhecido, velho (nem tudo que é novo e não familiar é assustador). O que é familiar, agradável, conhecido, caseiro, habitual, íntimo, (heimlich, onde heim é lar) e também segredo, escondido, oculto de onde vem o efeito unheimlich, ou seja, o estranho poderia ser aquilo que foi reprimido pela mente e está no inconsciente e sai para a luz. O estranho aparece quando questões relativas à infância (época do nosso desenvolvimento individual) ou a um pensamento antigo considerado ultrapassado que é reconfirmado. Isso mostra que a estranheza existe dentro de nós mesmos, como diria Van Gannep e Kristeva e que o estrangeiro a imerge com a sua presença.

 

[3] Essa concepção nos remete, mais uma vez, ao paralelo nietzschiano do apolíneo perfeito e total que esconde debaixo de si uma sombra, o fragmentário lado dionisíaco.

 

[4] Freud explica sobre a questão da autopunição durante um estado de melancolia no texto Luto e Melancolia.

 

[5] O texto de Sergio Paulo Ruanet, Édipo e o Anjo, fala sobre esse processo dentro do aparelho psíquico do homem moderno.

 

[6] O mundo é um teatro. As pessoas comuns, sem experiência (a perdida, de acordo com Benjamin) estão no palco se recriando através de identidades diversas (papéis, diria Gumbrecht). A cada peça, um novo papel. Mas como o ator, as personagens-pessoas (a raiz de ambas as palavras é a mesma, derivam de personae: máscara) estão atuando de acordo com o roteiro. Não podem variar muito do que foi entregue para elas, para não confundirem. Se aprofundarem muito e acabarem criando uma confusão nas marcações de cena, podem ser despedidas, ganhando um lugar cativo na platéia. Sorte daquele ator que tem essa oportunidade! Sentará ao lado do estrangeiro que ocupa a platéia. Este, por causa da sua posição em relação ao palco, tem a felicidade de poder enxergar melhor toda a peça do que o ator em cena ou nos bastidores, ocupados apenas com seus papéis. Mais profundamente e sem amarras e marcações dadas pelo seu papel (não o tem, pois ele não é personae), o estrangeiro não se estringe e pode levantar questões, seja através de aplausos ou vaias, ou por críticas escritas. 

 

[7] A imagem do iceberg é utilizada por Benjamin em A doutrina das semelhanças, quando mostra que a ponta é a única coisa que se é percebida pelos olhos conscientes, anestesiados de fuligem e avermelhados-mareados (por causa de um congestionamento de choro pela morte de algo que não se sabe o que é).

 

[8] Alusão à poesia de Olavo Bilac, Ouvir estrelas.

 

[9] As velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno. A assim chamada ‘crise de identidade’ é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social. (HALL, 1998, 7)” (link Silva).

 

[10] Identidades culturais na pós-modernidade. Um estudo da cultura de massa através do grupo Casaca: http://www.bocc.ubi.pt/pag/silva-sergio-salustiano-identidades-culturais.html.

 

[11] Para resolver isso, Gumbrecht acha melhor dar o nome de papéis, como no teatro, devido a essa incompatibilidade de estabilidades.

 

[13] Comentário de um aluno na aula do professor Júlio Diniz na PUC-Rio. 

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