quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Michel Leiris, l'homme sans âge, em busca de L'âge d'homme

1. Introdução:

 

 

“O ser humano é uma combinatória de experiências,

informações, leituras, imaginações.

Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca,

um inventário de objetos, uma amostragem de estilos,

 onde tudo pode ser continuamente remexido

e reordenado de todas as maneiras possíveis.”

(Ítalo Calvino, Seis propostas para o próximo milênio)

 

 

A primeira coisa que me chamou atenção quando comecei a ler textos acerca de Michel Leiris foi uma inscrição feita num dos primeiros volumes da obra. Ele escreveu, num dos manuscritos datados de junho de 1939, embaixo do título do livro, a palavra roman. Algum tempo depois, anotou num dos seus diários (data de 31 de janeiro de 1941) o seguinte: “quant à L’Âge d’homme[1], il est, en somme, la négation d’un roman[2] et je me suis proposé avant tout d’y condenser, presque à l’état brut, un ensemble d’images et de faits que je me refusais à exploiter en laissant travailler dessus mon imagination.” O que seria essa negação do romance? Comecei a me perguntar. Depois, o que veio em seguida foi a curiosidade sobre a forma como ele viu primeiramente L’Age d’homme (como um romance) e, ao final de tudo, a conclusão que tirou sobre a sua própria obra.

Sobre o romance tive minha primeira constatação. Durante o ato de escrever a sua autobiografia (uma espécie de etnografia surrealista), não viu diferença entre a escrita referente a uma realidade sua e a escrita fantasiosa, senão pelo trabalho com fatos e não com atos ficcionais. A forma como se escreve um livro com bases referenciais calcadas na ficcionalidade ou na realidade é a mesma. O apuro lingüístico também é o mesmo. Principalmente no caso de Leiris, para quem a linguagem importava muito na hora de se relatar. Dessa forma, por ter uma estrutura e um cuidado similar ao do romance, Leiris teria, no início, considerado seu livro um espécime do gênero. A partir desse princípio, então, o que está fora da escritura é o que a torna um texto ficção ou não[3] e o que Leiris escreve é autobiografia.

É a partir dos referenciais externos, sobretudo os adquiridos em trechos de cartas, diários e comentários de conhecidos (encontrados no site http://www.michel-leiris.com/) que pretendo desenvolver esse trabalho em busca da negação do romance de Leiris e da sua própria busca durante a construção do livro como um impulso típico do homem em crise. Este trabalho tem o intuito de analisar o que está dentro e fora dessa escritura de Leiris e relacioná-las a um pensamento da época ruminado por Walter Benjamin, a perda da experiência e a melancolia.

 

 

2.1 Romance x não-romance, eis a questão:

 

“Em toda a sua vida, nunca pudera ver a neve cair sem sentir uma espécie de vertigem.” (Leiris, 2003, p.77), “Em vez da engolidora de espadas, lamento não ter sido ela a se casar com meu tio acrobata” (Leiris, 2003, p.96), o tio acrobata, a tia cantora, Cabeça-de-alfinete, Kay, personagens e trechos do livro que nos parecem lúdicos, quase irreais, que muito bem caberiam num romance e que soam estranhos quando dentro de uma autobiografia. Afinal, normalmente, esperamos desta um tom mais cabido, sisudo, de uma quase documentação auto-explicativa. Isso nos faz pensar o que seria essa negação do romance que Leiris propõe se a sua linguagem é carregada de um lirismo digno do gênero romanesco?

Para responder a essa pergunta é preciso primeiro separar o que é romance e o que autobiografia.

Romance e autobiografia possuem mecanismos narrativos muito similares e ambos podem falar do eu, mas no romance a presença do eu é um suporte da invenção e na autobiografia é fonte de uma experiência que deveria ser transmitida. Quando Leiris disse que escrevia a negação do romance poderia estar se referindo a rejeição a toda e qualquer fabulação, só admitindo fatos verídicos como base da sua obra. Sabe-se que ele pretendia falar apenas daquilo que “conhecia por experiência e me tocava mais de perto, para que fosse assegurada a cada uma de minhas frases uma densidade particular, uma plenitude comovente – em outras palavras: a qualidade própria do se que diz ‘autêntico’.” (Leiris, 2003, p.21) para que isso pudesse “iluminar certas coisas para si próprio ao mesmo tempo que elas se tornam comunicáveis para outrem” e restituir pelas palavras certos estados experimentados. (Leiris, 2003, p.25).

Essa preocupação somava-se à estética do livro, fezendo-o reescrever a obra diversas vezes. Ele queria expor-se nu diante de todos, mas que isso fosse feito de uma forma bem redigida. Esperava assim seduzir a indulgência alheia e ser absolvido do quer que lhe criava um sentimento de culpa. É é exatamente essa escultura de palavras que faz com que dúvidas sejam geradas quanto a sua autobiografia. Conseqüentemente, a sua classificação também será confusa, pois o jogo estético, de teor romanesco em Leiris, acaba mexendo noutros pontos comuns do gênero biográfico como a temporalidade.

Em La problématique du temps dans le récit autobiographique de Michel Leiris, Maricela Strungariu[4] escreve que a autobiografia é um texto narrativo que fala de um mundo regido pelas leis da cronologia. Em Leiris a autobiografia joga com as seqüências temporais, com a tensão existente entre o presente da escritura e o passado da história contada, “du fait que son récit est, par sa spécificité architextuelle, rétrospectif.”. Isso acaba transformando seus textos em literários e metaliterários, jogos e regras de jogos, provavelmente, uma característica moderna, como diria Strungariu:

Par définition, l’autobiographie doit être un récit suivi, qui respecte l’ordre chronologique et essaie de mettre en évidence la continuité du moi et son évolution naturelle du passé vers l’avenir, sa genèse. Mais l’individu moderne semble ne pas être cohérent et son histoire évidemment non plus. Puisque “l’identité personnelle (...) ne peut (...) s’articuler que dans la dimension temporelle de l’existence humaine” (Ricoeur), dimension semblable à celle du texte narratif, un personnage complexe et fuyant, incapable de se comprendre et de trouver un sens à sa vie, ne peut être que l’objet d’un récit brisé et morcelé, toujours à la recherche de son unité perdue. C’est le cas de l’autobiographie leirisienne qui, tout comme les “autobiographies” ultérieures des nouveaux romanciers tels M. Duras, N. Sarraute, S. Doubrovsky, etc., brouille la chronologie et donne naissance à un tourbillon textuel difficile à suivre par un lecteur traditionnel qui s’attend à parcourir une histoire et non pas “un amas hétéroclite de faits”.

 

Não existe uma ordem cronológica em seu texto, sendo este distribuído em entradas temáticas que vão pontuando-o como indicadores da evolução de sua personalidade, criando uma fotomontagem entre eventos pessoais. Há um processo de fragmentação e descontinuidade na sua estrutura, o que mostra uma espécie de processo aleatório da sua memória e a sua capacidade de conexões entre figuras da sua galeria de lembranças.

O descontínuo temporal do texto de Leiris se adequa ao seu desejo de (re)construir sua existência através de uma linguagem bem trabalhada, livrando “le moi de l’emprise du temps”, revelando “ce que je suis maintenant, tandis que j’écris ce livre”. O tempo (tornado um jogo da linguagem), então, ganha espaço no segundo plano e os fregmentos são colados segundo a uma “logique secrète” (possivelmente experimentada e explorada nos seus textos do período surrealista). Mais uma vez, Leiris se prova independente ao não utilizar a cronologia real como se faz nos textos de caráter biográfico. Geralmente, nesse tipo de texto, a linguagem é importante, mas não seu ponto central, afinal, o importante nessa esfera de escritura são os fatos e não as letras com que eles são constituídos. Em Leiris é exatamente o contrário. A linguagem se tornou central para ele, sua via de transformação da infância à idade adulta.

No caso de Leiris, então, encontramos várias questões quanto a sua autobiografia. “Son statut de récit ‘vrai’ est remis en question et Michel Leiris, dans son grand cycle autobiographique, s’ingénie à démasquer la duperie de ce genre littéraire, mais aussi à trouver les secrets de sa séduction” (Strungariu[5]).

Mas acima de tudo, o que torna complicado chamar de autobiografia L’Age d’homme (ou qualquer outro livro) é o fato de termos como parâmetros uma autobiografia pura, ainda mais acrescido do fato de que ele nunca quis misturar registros.

É importante lembrar que nunca houve um gênero puro. No próprio Aristóteles, a tragédia e a epopéia, que eram gêneros nobres, também eram considerados híbridos. Sendo os gêneros formas discursivas históricas (que não devem ser confundidas com as formas canônicas, como nos lembram Wellek e Warren em Teoria da Literatura) e que não existe um texto sem gênero (como ressalta Jacques Derrida, em A lei do gênero[6]) podemos dizer que é justamente o caráter híbrido que nos confunde.

A própria existência do romance é uma prova desse hibridismo e dessa temporalidade. Sendo sempre obrigado a se reinventar ao se analisar depois de determinado tempo, o romance deve seguir os processos históricos pelos quais passa seu leitor e o manter moderno. “A genre that is ever examining itself and subjecting its established forms to review. Such, indeed, is the only possibility open to a genre that structures itself in a zone of direct contact with developing reality””, Bakhtin comenta em The Dialogic Imagination[7], argumentando também o caráter rebelde do romance, que rejeita “o despotismo da sua própria classificação”. Esse caráter liberal do romance faz com que complique a classificação de outros textos, que muitas vezes, têm suas fronteiras invadidas pela ficção, como a autobiografia.

Sempre há questões polêmicas envolvendo não só o gênero romanesco. O autobiográfico, inclusive, possui as suas. A autobiografia, por exemplo, se situa entre dois eixos problemáticos: o de que toda obra literária e autobiográfica e que a autobiografia pura não existe. Isso cria um jogo que poderia novamente nos levar a pensar as anotações de romance e negação do romance em Leiris. Se tudo que se escreve, até o romance, possui um caráter autobiográfico e a autobiografia pura não existe, então, não existiriam de fato textos autobiográficos, como conclui Paul De Man. Assim, a polaridade entre autobiografia e ficção teria sido disfeita. Ainda mais hoje em dia, em que as narrativas estão se misturando e livros de autoficção[8] começam a ser comercializados. Seguindo por essas suposições, poderíamos ir mais longe e galgando o levante em favor da autoficcionalidade, dar o nome de Leiris como um de seus prercursores.

A utilização de técnicas de ficção somada a questão da “fala do eu”[9] poderia nos levar à conclusão que haveria, pelo menos, um germe aí semeado por Leiris, antecedendo em 10 anos o que Lejeune nomearia como l’âge de l’autobiographie[10].

Apesar de ter levantado essas questões e por mais que a narrativa em prosa possa ser uma serpente capaz de dar o bote no seu próprio criador, classifiquei a obra de Leiris como talvez ele preferiria (e tanto dizia se esforçar para obter): uma autobiografia, ou melhor, a negação do romance. Ademais, ao mesmo tempo, basei-me em Lejeune, em Pour la autobiographie quando cito: “uma autobiografia não é quando alguém diz a verdade sobre sua vida, mas quando diz que a diz” (p.234)[11]. Por fim, acredito que o que Michel Leiris escreve é uma autobiografia-etnográfica-surrealista.

Contudo, é interessante pensar que a obra de Leiris nem sempre foi considerada uma autobiografia por teóricos. Em 9 de abril de 1946, numa carta à Pierre Prévost, redator chefe da revista Critique, Georges Bataille, diretor da mesma, comenta a reimpressão de L’Âge d’homme de Leiris e a possibilidade de Sartre (amigo de Leiris) escrever uma resenha sobre o livro. Em 29 de abril, Prévost responde que se Sartre não aceitar a tarefa, deveriam, então, pedir a Maurice Blanchot ou Georges Limbour. No número 11, de abril de 1947, é publicada a resenha de Blanchot intitulada Regards d’outre-tombe[12], em que revela que não considera o livro uma autobiografia, nem memórias, porque a autobiografia é uma “obra de uma memória vivente, vital, que quer e pode recuperar o tempo no seu próprio movimento” e, para ele, Leiris não consegue isso. Não são memórias porque estas são “reconstituições deliberadas e metódicas”, obras de reflexão, arte ou ciência, sobre uma existência histórica cheias de solenidades e de uma presença monumental. Blanchot acredita que L’Âge d’homme se aproxima das confissões, pois há nelas uma vontade de exposição por parte do autor, de se “confesser publiquement certaines des déficiences ou des lâchetés qui lui font le plus honte”.

Esse desejo de confissão (como para se purificar – uma catarse - através da escritura ao acorde de Santo Augustinho em suas Confissões) para Blanchot parece mascarar uma intenção obscura do livro que ele não sabe ao certo o que seria. Esse pensamento muito se assemelha ao de Nietzsche em que a vontade de dizer toda a verdade poderia ser motivada por algo anterior, “que a vontade de destruir todas as máscaras pode alimentar outra máscara” (escreve Costa Lima, retomado por Diana Klinger na sua tese de doutorado). Blanchot não entra em detalhes sobre tal vontade de ocultar, apenas avisa sobre o perigo de querer dizer “a verdade, nada mais que a verdade” (o que já é uma grande questão para a época e para si):

si l’auteur écrit pour se délivrer d’obsessions dangereuses, ce ‘bien’ qu’il escompte de son livre en diminue grandement le caractère menaçant. Qu’à force de sincérité il pense se guérir de ‘certaines déficiences et lâchetés’ il pourra bien, dans le même temps, éprouver tout ce que cette sincérité a de dangereux pour lui, en lui rendant plus difficiles les relations avec certains de ses proches, mais, finalement, ce ne sera qu’un mal en vue d’un bien, un inconvénient momentané qu’il accepte pour se débarrasser d’inconvénients bien plus graves, un effort risqué pour vivre désormais à l’abri des risques que représentent obsessions et déficiences.

 

 

 

2.2 Olé! A verdade, nada mais que a verdade:

 

Michel Leiris se considerava um “maníaco da confissão” e, para ele, o fazedor de confissões deveria se submeter a uma regra fundamental: dizer a verdade e nada mais que a verdade, com firmeza e sem artifícios que venham a mascará-la. Através da literatura confessional queria poder obter o máximo de lucidez e sinceridade sobre sua figura, queria se desembaraçar de representações incômodas, dissipar a idéia errônea que outros poderiam ter a seu respeito. Somado a isso, fazia questão de utilizar uma linguagem literária bem trabalhada. Pelo menos se não conseguisse seu objetivo, o seu texto teria algum valor estético. Esse uso da verdade (nada mais que a verdade) também era uma tentiva de se engajar por inteiro na sua literatura, esperando que ela o modificasse ajudando-o a tomar consciência de si e mudasse a relação com familiares. “Antes, a vontade de confessar para partir de novas bases, mantendo, com aqueles cuja afeição ou estima eu valorizava, relações sem trapaça dali por diante.” (Leiris, 2003, p. 19).

Entendemos essa sua obsessão por se confessar, dizer nada além da verdade quando explica no texto Literatura como tauromaquia, a relação entre ser escritor e ser um toureiro.

 Para ele havia um gênero maior na literatura ao qual pertenciam obras que continham “o chifre do touro”. É um texto que seja capaz de possuir “um risco direto assumido pelo autor seja uma confissão, seja de um escrito de conteúdo subversivo, modo como a condição humana é olhada de frente ou agarrada pelos chifres”. (Leiris, 2003, p.24). Ele queria trazer essa força para o seu texto através do uso da verdade.  “Se nada houver, no fato de escrever uma obra, que seja um equivalente (e aqui intervém umas das imagens mais caras ao autor) daquilo que é para o torero o chifre acerado do touro, capaz de conferir – em razão da ameaça material que contém – uma realidade humana à sua arte, de impedir que ela seja apenas encantos fúteis de bailarina?” (Leiris, 2003, p.16).  

A forma de “introduzir nem que seja a sombra de um chifre de touro numa obra literária” foi através de obsessões sexuais, sentimantais, confissão de deficiências e covardias. Principalmente o sexo, tema tabu em muitas épocas, ajudava a falar da sua vida sobre o ângulo do erotismo que lhe pareceu uma forma de fazer dele um toureiro. “O matador que corre perigo em nome da oportunidade de ser mais brilhante que nunca, e mostra toda a qualidade de seu estilo no instante em que é mais ameaçado: eis o que me maravilhava, eis o que eu queria ser.” (Leiris, 2003, p.17).

Foi Picasso quem introduziu Leiris à tourada, mas foi a tourada que introduziu Leiris ao não-romance, a criação de um texto todo esculpido na verdade. Leiris pretendia conferir a sua literatura o que para o toureiro é o chifre acerado do touro, mas se para o toureiro havia o perigo da morte real e o que havia para o literato? Como criar uma ameaça de tal peso que faça aparecer na sua obra um chifre de touro? Além disso, considera importante haver a morte de um animal no fim e perigo da morte para o que o mata. Quem iria morrer ao fim da obra? O poeta, responderia Virginia Wolf?[13]

As regras que toureiro deve seguir e a autenticidade podem levar a uma tragédia real, ao derramamento de sangue, enquanto para Leiris não havia essa ameaça. “Está entendido de uma vez por todas que escrever e publicar uma autobiografia não acarreta para quem se responsabiliza por ela (a menos que tenha cometido um delito cuja confissão o faria expor-se à pena capital) nenhum perigo de morte, salvo circunstâncias excepcionais.” (Leiris, 2003, p.21) O autor pode perder as relações com os mais próximos e “ser desconsiderado socialmente, se as confissões qie faz vão demasiado contra as idéias aceitas; mas é possível, mesmo não sendo um puro cínico, que tais sanções tenham pouco peso para ele (...) e que portanto ele faça seu jogo com uma aposta inteiramente fictícia.” (Leiris, 2003, p.21).

Esse risco moral não se compara ao material do toureiro, como assinala o próprio Leiris no prefácio da edição brasileira de L’âge d’homme, Literatura como tauromaquia. Mesmo assim, o medo de Leiris dessa exposição de si[14] persistia e o fez escrever no exemplar de sua mãe, Marie Leiris, o seguinte: “À minha cara mamãe, que lerá nesse livro coisas que lhe serão, provavelmente penosas, mas que compreenderá, tenho certeza, que não é mais do que a representação das injustiças de crianças e não mais que a atraente ternura da idade adulta.” Depois de ler o livro, ela escreve uma carta datada de Saint-Pierre-lès-Nemours, 16 de novembro de 1939: “Eu terminei seu livro e fez bem em contar com a minha compreensão. Eu o li com muito interesse e não fiquei chocada como você acreditava, eu o conheço muito bem. O que me poderia me aflingir é que você não me deixasse ler, eu veria uma valta de confiança em mim, em minha ternura por você e eu ficaria com pesar.”  

Houve aqueles que reclamaram sim da leitura que Leiris fizera da sua vida e das pessoas que dela faziam parte (apesar destas aparecerem muito pouco) e de como haviam sido descritos no texto. Em seus diários, em 6 de janeiro de 36, Michel Leiris comenta as reclamações de Jouhandeau, sobre a maneira que fala dele e da esposa de Leiris. Ainda no mesmo diário, Leiris explica que o desejo de se justificar é base da sua necessidade de confissão nesse livro. E aceita a idéia de que o livro é egoísta, como pensa o amigo, e explica que falta um coração que consiga fazê-lo se fixar em outra coisa que não nele. No dia seguinte, 7 de janeiro de 1936, escreve mais sobre o assunto, que provavelmente o perturbara:

Je voudrais que mes amis se rendent bien compte que L’Âge d’homme est une liquidation. Si j’ai fait mon portrait avec tant de minutie, en me montrant si vil, ce n’est pas par complaisance mais avec sévérité et comme un moyen de rompre. Ce que m’a dit Picasso, de mon portrait physique du début : “Votre pire (ou meilleur) ennemi n’aurait pas fait mieux !” Il est insensé qu’on puisse se méprendre sur la signification de ce livre au point d’y voir une pure revendication égoïste, une façon désinvolte de rabaisser les autres au rôle de comparses. Je ne parle que de moi, c’est entendu, et des autres qu’en fonction de moi-même, mais c’est justement de cet égocentrisme que je souffre et d’une telle attitude que j’ouvre le procès ; sans doute, ce n’est pas encore dans ce livre que j’instruis le procès, mais j’y présente toutes les pièces à conviction, ce qui est le commencement normal de tout procès. Qu’on me reproche mon attitude égoïste, soit ; mais qu’on me reproche d’avoir écrit ce livre (comme si, ce faisant, je m’affermissais dans un tel égoïsme) c’est ce que je ne comprends pas[15].

 

Há aqueles que gostariam de ter feito o mesmo e com tanta coragem para se decoupar, como Jean-Paul Sartre anota num de seus cadernos datado de 19 de dezembro de 1939:

Ce matin, en écrivant sur ce carnet que je voudrais essayer d’attraper le style de mes gestes, je me suis fait l’effet d’un maniaque de l’analyse, genre Amiel. Pourtant je suis resté plus de quinze ans sans me regarder vivre. Je ne m’intéressais pas du tout. J’étais curieux des idées et du monde et du cœur des autres. La psychologie d’introspection me semblait avoir donné son meilleur avec Proust, je m’y étais essayé entre 17 et 20 ans avec ivresse mais il m’avait semblé qu’on passait maître fort vite à cet exercice et que d’ailleurs les résultats étaient assez monotones. Et puis l’orgueil m’en détournait, il me semblait qu’à mettre le nez sur de minimes bassesses on les grossissait, on leur conférait de la force. Il a fallu la guerre et puis le concours de plusieurs disciplines neuves (phénoménologie, psychanalyse, sociologie), ainsi que la lecture de L’Âge d’homme, pour m’inciter à dresser un portrait de moi-même en pied.[16]

 

 

Essa crítica de Jouhandeau sobre o excesso de eu em Leiris se daria pelo fato de que ele já estaria vivendo o início de um momento em que há um desejo de “falar de si”. Contemporaneamente, a maioria dos romances estão voltados para a experiência do próprio autor, o que marca o insurgir de uma sociedade “do eu”, da fala de si, do sujeito solitário imerso num mar de memórias, biografias, autobiografias, testemunhos, confissões, ego-histórias, perfis, entrevistas, realityshows, blogs, etc. Isso poderia ser tratado como uma forma de pensar de fin-du-siècle, a sensação de viver numa época terminal, como foi pensado no século XIX. O que carimba essas literaturas atuais são quase os mesmos elementos surgidos no fim do século de Nietzsche, Freud e Marx: sentimento de fim, morbidez, cuidado na busca de novas sensações intensas, formas bem trabalhadas e pensadas, tensão entre contextos sócio-político-econômicos.

No E-Dicionário de Termos Literários, no verbete Decadentismo[17], José Costa Idéias explica que a recusa do utilitário usado pela burguesia de valores mercantis, para reclamar do novo, projetou como contraponto o “culto do eu”: “o culto exarcebado do artifício, do anti-natural, do excesso, do decorativismo sensualista (a predominância dos universos de simulacro, a sofisticação ritualística dos objectos, o fascínio pela flora exótica ou artificial, o ludismo sinestésico, a sintaxe dos odores) e o culto do individualismo (expressão dum egotismo absoluto, clara hipertrofia do eu), a centripetação subjectiva (especularidade narcísica), a ficcionalização de um narcisismo paroxístico.” Um sentimento de ilusão que sufocava. Essa é a bagagem literária de Leiris que, como os autores percetencente a ela, cria uma reação irracionalista-espiritualista contra o positivismo e cientifismo através do onirismo, mitos, imaginação e fantástico. Estes, no caso dele, são tematizados com grande importância, mas não podem ser utilizados como forma, senão, iriam contra a idéia de dizer a verdade.

Acredito que seria interessante pensarmos a autobiografia de Leiris como faz seu amigo e mentor André Masson: um livro que vai além da autobiografia tradicional. Numa carta em julho de 39, emdereçada à Leiris, escreve:

Je trouve L’Âge d’homme très important. Tu places l’accent sur l’essence de l’angoisse : la certitude de l’homme d’être enfermé dans sa finitude - Enfermé dans l’arène-labyrinthe, se débattant et s’embrouillant dans ses propres viscères il cherche une issue qui ne peut être que sa propre fin. Naturellement Éros tient le premier rôle dans cette tragédie mais Freud est dépassé. Tout cela jaillit merveilleusement de ton livre qui dépasse de beaucoup la traditionnelle “autobiographie”. [...] Je t’écrirai plus longuement mon vieux - dans quelques jours - je veux te reparler de ton livre qui m’enthousiasme.[18]

 

 

Um livro que entusiasma pela sua audácia e que poderia ser comparado a um ato de heroísmo ao tentar superar o humando escrevendo e falando de si em minúncias. Mas, de acordo com o tom agressivo e irônico que carrega, é, provavelmente, uma verdade gerada pela violência e pela individuação contestante que parecia carregar contra si mesmo. Debaixo das confissões, realmente haveria algo, como pensava Blanchot e talvez este algo possa ser explicado pela melancolia[19], que provavelmente o levou a se tratar com terapia.

Apesar de toda essa preocupação com a verdade, só ela não bastava para Leiris. Os fatos em era pouco diante de toda a sua empreitada. O chifre do touro não apareceria apenas no texto. Deveria também aparecer na construção do texto, isto é, como escrever a verdade através das palavras belamente trabalhadas a ponto de não lhes tirar o sentido que interessava ao seu escritor? O que queria era saber como contar a verdade através da linguagem oscilante de uma escrita literária, sem que perdesse o frescor literário nem a raiz verídica dos fatos.

 

 

2.3 Cuidado! Memórias em construção:

“ Parler de soi-même

signifie ne plus

 être le même ‘soi-même’”.

(Tzvetan Todorov)

 

Noutro texto de Maricela Strungariu, Le récit autobiographique et les problèmes de la mémoire: le cas de Michel Leiris[20], discute-se sobre o que é autobiografia e analisa-se o livro de Leiris, aderindo-se, por fim, à conclusão de Phillippe Lejeune que a autobiografia é um discurso retrospectivo em prosa que uma pessoa real faz da sua própria existência. Contudo, a ciência já mostrou que a memória oscila, podendo até gerar memórias falsas sobre coisas que nunca aconteceram, criando uma incerteza. Seguindo essa idéia, pode-se começar a pensar se é possível encontrar na autobiografia invenções, afinal, há um grande abismo entre agora e ontem e é justamente a memória quem organiza o discurso, traçando as etapas da narrativa. O próprio texto de Leiris dá alguns indicativos disso, não só nas notas finais, reescritas anos depois, como no próprio texto. Num trecho diz lembrar de dois acidentes acontecidos com o irmão mais velho, mas coloca em seguida “de um deles não sei, tão jovem eu era então, se tenho a lembrança real ou se reconstituo a cena conforme me contaram” (Leiris, p.112) ou como nos casos abaixo:

A)[21] Não estou certo de me lembrar exatamente quais eram essas cores, nem sobretudo a que fases da vida correspondiam, mas ei-las aqui tais como me voltam à memória. (Leiris, p.33)

B) Não estou longe de acreditar que a essa primeira noção do infinito, adquirida porb volta dos dez anos (?), misturava-se (...) (Leiris, p.36)

C) É obvio que eu só percebia isso muito confusamente. Consigo reconstituí-lo aqui com base em minhas lembranças, acrescentando-lhes a observação daquilo que me tornei desde então e comparando entre si elementos antigos ou recentes que minha memória me fornece. Esse modo de proceder é talvez arriscado, pois quem me garante que não dou a essas lembranças um sentido que elas não tiveram, carregando-as posteriormente de um valor emotivo que não possuíram os acontecimentos reais aos quais ela se referem, em suma, ressucitando esse passado de uma maneira tendenciosa? Deparo-me aqui com o obstáculo que enfrentam fatalmente os fazedores de confissões e memórias, e isso constitui um perigo que, se quiser ser objetivo, devo levar em conta. (...) (Leiris, 2003, p.49)

 

O que antes separava ficção e autobiografia, construídas praticamente da mesma forma, era que a história contada pela autobiografia era real e seu tempo também. Mas se ambos podem ser recriados pelos mecanismos mentais e não se há certeza de sua veracidade, cria-se assim um Caostextual. E será preciso buscar outra forma de analisar essas duas vertentes. Talvez a melhor maneira seria através da vontade do autor, isto é, se sua ficcionalização é consciente ou não.

Ainda sobre isso, Roland Barthes parece nos trazer uma resposta que gera mais dúvidas sobre Leiris. Em seu texto autobiográfico Roland Barthes por Roland Barthes, escreve que “tudo o que aqui se diz deve ser considerado como dito por um personagem de romance” (Barthes, link[22]). A partir daí, “a verdade sobre si mesmo só pode ser dita na ficção e “quando se diz uma verdade sobre si mesmo deve ser considerada ficção.” Leiris escreve ficção como se fosse verdade para dizer a verdade ou ele acha que escreve a verdade através da verdade quando está, sem saber, escrevendo ficção? Muito confuso![23]

Seria aqui interessante ainda pensar que, de acordo com os psicólogos, tanto a memória quanto a imaginação[24] estão interligadas por um fio de verdade, pois ambas partem de uma construção (consciente ou não) do sujeito a ser analisado. Ou seja, a verdade ligada à autobiografia só é passível de ser atingida se através da mediação do ficcional, do imaginário, matéria-prima do romance e labirinto onde pode se extraviar aquele que fala de si mesmo. Inclusive, é bom lembrar que a autobiografia, de acordo com Blanchot, esonde algo por trás de si que talvez só possa ser encontrada na ficção.

Outro problema acaba afetando a construção da autobiografia leirisiana. Para os psicólogos, a identidade do eu é uma forma de projeção no outro que não é estável, ou seja, não há uma identidade fixa em nós como queriam os pensadores da Antiguidade[25] como Platão, ou até mesmo mais recentes como Schelling e Heidegger. Somada a essa instabilidade está o fato da linguagem (pela qual essa identidade é construída em Leiris), se analisada pelo microscópio pós-estruturalista, tomar diversas interpretações que constituem um mundo ao invés de refleti-lo. Isso cria um complexo de labirintos pelos quais o leitor se perde entre as vias da linguagem (esta não seria mais capaz de interpretar aquilo que está fora de si) e ainda pode, no ínterim, encontrar tantas identidades no autor, que este mesmo pode não saber que existam. Perdeu-se a idéia de uma resposta única, desejada pelo autor, quando posta nas páginas de um livro e dependente da interpretação de um determinado leitor.

Dessa maneira, o leitor se torna peça fundamental nesse aspecto e no caso da autobiografia, particularmente, de acordo com Lejeune em Le Pacte Autobiographique[26]. Enquanto nas formas ficcionais há uma implicação do eu, o discurso autobiográfico se diferencia delas não por causa do “grau profundo de sua sinceridade” mas pelo pacto que é criado entre autor e leitor. Há aqui dois pactos, o de referencialidade, aquele em que o autor narra algo que realmente aconteceu e que pode ser comprovado, e o de indentidade, fundamental para Lejeune para carimbar um texto como autobiográfico porque o autor deve convencer o leitor que a pessoa do nome na capa é a mesma que narra e se responsabiliza pelo livro. Mais tarde, nos anos 1980, Lejeune lança um livro, Je est un autre. L´autobiographie de la litteraure aux midias (link idem), no qual reconhece a falta de verificação no texto autobiográfico, pois está fundado sobre a memória do sujeito. Como chegar até ela? Ainda mais quando se foi provado que até a memória, o que pode ser dado como certeza absoluta, pode ser construída?

Para tentar suprimir problemas de memória, Leiris acaba por utilizar pequenas fichas nas quais escreve coisas que a memória fornece de tempos em tempos em forma de fragmentos e sem ligação entre uma coisa e outra. Prova assim a teoria de Todorov sobre uma memória que seleciona e onde há a interação entre esquecer e preservar, sendo impossível reconstruir tudo integralmente. Como nos conta Maricela Strungariu: “Ses notes sont des ‘procès-verbaux d’observations ou d’expérience’ qu’il va relier et entre lesquelles il va trouver des rapports secrets, dans un vrai travail de démiurge. Cette combinaison tient de l’alchimie verbale et de l’invention et témoigne de l’aspiration de l’auteur de donner à sa vie un sens.” Apesar disso, há momentos no texto de Leiris que ele mesmo não sabe se o que está relembrando é verdade ou não, como já disse no início desse trabalho.

No fim da sua vida, em Le ruban au cou d’Olympia, o próprio Leiris diz que não pode concluir o pacto de sinceridade com seu leitor e de misturar intencionalmente os gêneros a ponto de criar dúvidas: “ (...) je ne vois pas pourquoi (...) la chose que je tire de ma mémoire aurait le pas sur celle que j’imagine. Ce qui compte, c’est seulement que cette chose (...) me ressemble (...) et que, même si elle est une pure fiction (...), elle recèle mes traits les plus significatifs (...).”[27]

Hoje em dia, dentro do campo da literatura, a imaginação, que antes se restringia como um fator essencial do discurso ficcional, começou a ter um papel decisivo no discurso factual ao ajudar a memória a reconstruir o passado do indivíduo pós-moderno interessado nesse resgate mnemônico dentro do campo da subjetividade. Se, segundo Lejeune, a forma autobiográfica não é instrumento de expressão de um sujeito preexistente, nem um papel e, sim, aquilo que determina a existencia desse sujeito, o que faz Michel Leiris durante todo o percurso de seu texto é mostrar como chegou até esse ponto. Uma forma de se engajar em si mesmo, como diria Sartre, em julho de 1945 num artigo publicado na Vogue americana intitulado New writing in France : the Resistance “taught that literature is no fancy activity independent of politics: “Pour Camus, pour Leiris, pour Jean Cassou, pour tous les jeunes écrivains, parler est une affaire sérieuse ; écrire, une affaire plus sérieuse encore. Et comme ils savent que leurs œuvres engagent nécessairement le lecteur, ils veulent s’engager eux-mêmes complètement dans leurs œuvres.”[28]

 

 

2.4 Experenciar ou vivenciar?

 

L'Age d'Homme foi publicado ao sopé da Segunda Guerra Mundial[29], em 1939, aos 34 anos de seu autor, e é o primeiro livro a falar estritamente da biografia deste. Enquanto L'Afrique Fantôme é um diário íntimo (narrativa rápida, movimentos de humor, etc), L'Age d'Homme é um livro de confissões, minusiosamente escrito e refletido e sempre com a idéia de “dizer a verdade, nada mais que a verdade”. A novidade em Lieris se encontra justamente na questão de dizer tudo, não esconder nada, mostrar os pequenos tiques e manias numa desconstrução do gênero tradicional biográfico e dando demasiada importância à linguagem.

Para ele, se expor na e pela literatura através de um jogo de linguagem que não prive do sentido de verdade e crie uma máscara é a única forma capaz de aos olhos do escritor de “introduzir os chifres do touro na obra”. O toreiro é ele, os chifres do touro são os perigos aos quais suas revelações não deixarão de se expor e como isso será feito. O que estava em pauta era o de escrever e não o que estava escrevendo. Estava mais preocupado com escritura como ato de perigo e a verdade vinha apenas como o capote de paseo[30]. Ele queria dar uma realidade ao livro que achava que não existia mais na literatura da época, em crise, de acordo com ele: “Literatura, termo hoje bastante desacreditado” (Leiris, p.28). Crise essa porque o sujeito moderno, atrelado ao romance, começava a perder a sua centralidade focada, mostrando-se desfragmentado e cheio de buracos, o que gerava um estado de melancolia. Leiris queria sair do seu processo de melancolia através da literatura, a que ainda acreditava existir.

Quando Leiris aparece com sua autobiografia, relatando a sua vida, mesmo que de forma fragmentada, impulsiona de duas formas a crise. Mostra-se pertecente a ela por causa da sua forma escrita moderna e romanceada e se mostra contra ela ao tentar captar a narração tradicional ao querer falar somente a verdade, das experiências incutidas nas memórias. Isso pode ser explicado pela dicotomia experiência-vivência formulada por Walter Benjamin.  

Atualmente se vive uma nova sensibilidade causada pelo excesso de choques na modernidade, principalmente após a industrialização. O antigo dispositvo de captação e absorção do choque na mente humana, analisado por Freud e retomado por Rouanet no texto Édipo e o Anjo, começa a predominar sobre o de armazenar as impressões na memória, fazendo com que haja uma mudança da questão da experiência para vivência. Pertencem à experiência as impressões acumuladas na memória (excitações não conscientes que ao serem transmitidas ao inconsciente deixam traços mnêmicos duráveis, como explica Rounet). Já a vivência é composta por impressões de choque captadas pela consciência e desaparecendo depois, já que a consciência não as retêm. “Quanto maior a participação do elemento de choque nas impressões individuais, quanto mais incansável a atividade da consciência na defesa contra as excitações (Reizschutz), e quanto maior o êxito com que ela opera, menos essas impressões são incorporadas à experiência, e mais elas satisfazem o conceito de vivência.” (Benjamin, citado por Rouanet, p.48).

Para proteger-se contra choque, o homem moderno vai perdendo a memória individual e coletiva e, automaticamente, vai perdendo historia e a integração numa tradição. As ego-histírias hoje estariam tentando buscar o que havia nas sociedades tradicionais: no passado coletivo rememorado a incorporação individual da memória da experiência.

Traduzido para a dicotomia proustiana, a memória voluntária seria a acionada pela inteligência, aquela que não diz nada sobre o passado, sendo apenas vivência, e a involuntária é aquela que extrai do inconsciente impressões do passado, mergulhando na experiência. Dessa forma, podemos pensar que Leiris se baseia em Proust na escritura do seu livro.

Walter Benjamin, em dois textos seus, Experiência e pobreza e O Narrador (ambos no livro Magia e técina, arte e política) mostra essa mudança, que foi sendo analisada no início do século XX e que ele chama de “a perda da experiência”, através da figura da narrativa tradicional e do romance. Não é uma experiência qualquer, mas a experiência transmissível passada de geração a geração, continuando um tempo que hoje foi fragmentado pelo trabalho moderno. Com essa perda, também se perdeu a narração tradicional por causa de um desencantamento com o mundo, uma melancolia, um declínio na aura dos objetos e na capacidade de contar e receber conselhos, de orientar-se com a perda da totalidade em que o homem antigo se inseria no mundo.

Arte de narrar está no fim porque o lado épico da verdade, sabedoria, está agonizando com o esfacelamento da unidade do homem, principalmente no fim do século XIX e com o pós-modernismo hoje, marcado pela criação do romance, pois este depende do objeto-livro (possível apenas com a invenção da imprensa) e é visto como uma singularidade, lugar do individuo isolado, seu tempo é fragmentado e descontínuo, o que lembra a era industrial.

Enquanto o narrador tradicional retirava sua história da experiência própria (associando-se assim, à memória) ou alheia para incorporá-la a dos ouvintes durante o discurso, o romancista segrega-se do seu leitor por um livro. A origem do romance é individuo isolado, que não pode mais falar exemplarmente de suas preocupações nem pode receber ou dar conselhos, pois tem uma memória perturbada, fragmentada, uma rememoração. O romance quer ir atrás do sentido da vida, lutando contra o tempo, nesse caso. Já a narrativa tradicional trabalha em favor do tempo em busca de uma moral da história.

Leiris, apesar da sua memória fragmentada e da sua busca pelo sentido da vida através da sua escritura, procura passar para os outros alguma coisa que antes era o lugar da experiência. Dessa maneira, poderíamos explicar o motivo da sua negação do romance.

Benjamin utiliza a vivência para explicar o indivíduo particular, na sua solidão e interiorização pertencente à modernidade cheia de choques. E que esse individuo embebido do medo da morte, já que como centro têm a si mesmo a perder, procura deixar uma marca de alguma forma, uma obra, de preferência ressurgimento do autor e a necessidade de todos querem relatar suas vidas. E isso parece cada vez mais difícil como mostra Benjamin em Experiência e pobreza[31]. Rastros são difíceis se serem deixados atualmente com tantas mudanças que levam a uma mudez (a própria linguagem tem dificuldade de acompanhá-las) e a tantos choques, que nem se é capaz de refletir sobre eles depois, pois o tempo está acabando, por mais que a ciência tente alongá-lo. É como se morássemos em casas de vidro, cuja superfície é escorregadia e nada pode ser pregado, apenas visto e vivenciado como na leitura de alguns romances tradicionais.

Para tentar inverter essa situação, criando novos valores, como argumentaria Nietzsche, deve surgir um novo homem desse esvaziamento da tradição, dessa cultura de vencedores, aquele que emerge das ruínas do antigo, o iconoclasta que “para recompor os escombros que se acumulam à sua frente tem que reduzir a escombros os monumentos dos vencedores.” (Rouanet, p.53). Esse novo bárbaro sem passado ou experiência deve começar de novo, aproveitando essa pobreza e desprendimento até de si mesmo. Principalmente o melancólico, figura saturnina diversas vezes associada ao artista, porque este mergulha no objeto para compreender o mundo, aninhando-se nas ruínas para percerebr a natureza do mundo em ruínas[32]. Esse poderia ser Leiris diante dos escombros de Havre.

 

 

2.5 Michel Leiris, recusa, melancolia, trauma:

 

Então, inspirado pelas leituras de Temps retrouvé de Proust e de Pierre ou les ambiguïtés de Herman Melville, Leiris tenta escrever uma autobiografia que mistura etnografia e psicologia, não para contar a sua vida, mas para das ruínas de si construir alguma coisa, quem sabe se entender durante o processo de escritura. No entanto, Leiris acreditava que a autobiografia era um lugar privilegiado como o definido por Maurice Nadeau: a quadratura do círculo, isto é, um lugar onde se empreende uma ação devotada ao erro, ao fracasso[33]. Talvez por isso sempre estivesse escrevendo autobiografias, uma atrás da outra. Por causa dos problemas envolvendo o caráter autobiográfico, tentava não fracassar na próxima.

Mesmo não se achando grande toureiro, quer fazer da escrita um sistema capaz de possuir um código de saber viver e de arte poética. Essa combinação, então, começa a aparecer mais definida em La règle du jeu. Porém, nunca trouxe um sentimento de sucesso ao autor. Em 1940, começa a escrever Biffures (1948), o volume de abertura de La Règle du Jeu, a sua mais importante obra literária. Foram pouco mais de 36 anos trabalhando nesse livro de mais ou menos 1200 páginas (o quarto e último volume Frêle Bruit só saiu em 1976).

Leiris escreveu suas autobiografias com um importante preceito surrealista (movimento do qual fez parte desde o início), o de deixar a escrita correr junto à imaginação, fazendo da sua obra uma escrita automática. O manisfesto surrealista[34] deixava bem claro que “O surrealismo não é um meio de expressão mais ou menos fácil, nem mesmo uma metafísica da poesia. É um meio de libertação total do espírito e de tudo o que se parece com ele (...) O surrealismo não é uma forma poética. É um grito do espírito que se volta a si mesmo e está decidido a moer desesperadamente suas travas. E, se necessário, por meios materiais”. São essas travas, esse processo que perpassa o espírito que Leiris quer descobrir com a sua escritura. A feitura do livro só poderia ser relacionada com essa (re)desconstrução através da escrita como disse anteriormente.

Quem é esse Michel Leiris em ruínas?

Nascido em Paris no ano em que as francesas ganham pequenos direitos ao voto e que Santos Dummond cruzava os ares da cidade, conheceu em 1922, por volta dos 21 anos, o pintor André Masson e por ele o movimento surrealista. Foi Masson, seu futuro mentor, quem o encorajou a escrever depois de Leiris ter passado por uma experiência desagradável com um poeta moderno o qual não nomeia no livro L’Age d’homme, que o aconselhou a desistir da escrita e a quem, por um tempo, Leiris aceitou como um julgamento sem apelação possível:

Nunca tive facilidade de escrever; a tal ponto que, durante muito tempo, nem mesmo me veio a idéia de que pudesse um dia ser o que chamam de escritor. O primeiro poeta moderno que conheci pessoalmente (homem que eu admirava pelo menos tanto quanto a Apollinaire), várias vezes me desencorajou, instando-me a continuar burguesamente meus estudos sem pretender outra coisa senão ser um “homem culto” ou, pelo menos, um “amador destacado.”(...) para que eu chegasse a produzir algo de legível, foi preciso conhecer o pintor A.M. e obter seu apoio, bem como o do pequeno número de íntimos que se reuniam em seu ateliê. (Leiris, 2003, p.172)

 

Apesar de conhecer pouco sobre Masson e sua obra, poderia dizer que Lairis teria sido influenciado quanto a temática das metamorfoses, o registro de um universo em (r)evolução, o uso de cenários dramáticos povoados de seres míticos e retratos imaginários e tudo permeado de um simbolismo erótico.

Seguindo, então, com o apoio de seu mestre, em 1925, Leiris lança seu primeiro livro de poesias, Simulacre, que foi ilustrado por litogravuras de Masson. No ano em que se casa com Louise Gordon (filha de um célebre marchand de quadros)[35], colabora com a Revolução Surrealista. Ele vivia dentro do movimento, seguindo seus passos, “decompondo as palavras do vocabulário e reconstituindo-as em trocadilhos poéticos que me pareciam explicitar sua significação mais profunda, sonhando todas as noites, anotando meus sonhos, tomando alguns deles como revelações cujo alcance metafísico precisava descobrir (...)” (Leiris, 2003, p.177). E mesmo que mais tarde tivesse rompido com o movimento, ainda estava impregnado nele através da “receptividade em relação ao que nos parece dado sem que o tenhamos buscado”, “valor poético atribuído aos sonhos”, “amplo crédito concedido à psicologia freudiana”, “repugnância em relação a tudo que é transposição ou arranjo, ou seja, compromisso falacioso entre os fatos reais e os produtos puros da imaginação, necessidade de faltar às conveniências.” (idem, p.20). Leiris queria produzir uma literatura que mostrasse não só uma mudança na concepção de mundo moderna, mas a sua experiência nele, mesmo que uma experiência de refus (recusa).

No seu diário datado de 31 de janeiro de 1941, fala que não só L’Age d’homme é uma negação do romance, que ele mesmo se propõe a negar, a se recusar, como na obra L’Afrique fantôme em que procura uma negação do escrever um livro que fosse reconhecido como parte do gênero de literatura de viagem ou uma negação que leva a destruição em Glossaire j’y serre mes gloses (livro que vai se distinguir por causa dos subtítulos de definições baseadas em jogos de palavras típico do surrealismo) e “Abanico para los toros répond à une gageure, qui est elle aussi une manière de refus : construire des poèmes dont chacun se référerait à une réalité précise, susceptible d’être scientifiquement - éruditement – décrite”. Essa negação é vista por ele como “la signification essentielle que j’attache à mon activité poétique est celle d’un refus. Il n’est donc pas question pour moi de publier dans des conditions telles que cela représenterait pour moi, implicitement, une acceptation de ce qui se passe actuellement dans le domaine politique.”[36]

Ao se pensar negação, nos vem à mente, a palavra niilismo, que significa a perda de um ideal pelo “desaparecimento de uma referência desejável e mobilizadora, que se revela por uma atitude meramente contemplativa do mundo e pelo desalento. Significa também a aceitação do jogo dos contrários de que o mundo é composto para o qual não se vislumbra uma solução satisfatória; significa também a  negação das estruturas estáveis do ser num mundo tornado fábula.” (Cabral, link[37]). É um desencanto, uma descrença, ao ruir de questões antigas e a ausência de valores que tomem esse lugar, que gera uma vontade de fazer nada. Por Eunice Cabral é considerada uma “descrença em relação à modernidade; é, em muitos textos literários, a camada residual de significações proveniente do estilhaçamento da noção de progresso unitário e supostamente universal, aparecendo como desenraizamento, secularização, antipositivismo, espiritualismo vagamente panteísta”. É importante ressaltar que vanguardas como o surrealismo não são niilistas “porque visam transformar a obra de arte num acelerador do tempo (por isso são revolucionárias) e pressupõem valores remodeladores da vida decorrentes de experiências humanas ainda não configuradas pela arte”. Tanto Leiris quanto o niilismo tomam na literatura o fragmento e fronteiras borradas como um meio de mostrar a ausência de alguma coisa, a perda de uma unicidade, no caso do niilismo, de valores absolutos, de Deus, do Autor. Ambas as mortes marcam um momento de perda de sentido para o que antes era tido como o maior valor a ser alcançado. Porém, o lugar ficou vago, quem vai ocupá-lo? Novos valores? A arte? As celebridades, o trabalho? A linguagem, o leitor? Ou nada vai ocupar esse espaço? Mais criações humanas, como Nietzsche pensava? Há apenas niilismo, desânimo para mudar que pode ser sentido ao redor do mundo, diante de massacres, problemas naturais ou humanos, políticos ou econômicos, em que todos apenas ficam parados, olhando e sem esperança. Até quando o referente estará perdido? Até novos valores serem criados depois que a melancolia passar sozinha e com o tempo.

Há todo um estado de melancolia (temperamento saturnino digno de artistas) envolvendo Leiris e sua obra, principalmente no uso das figuras trágicas como alegorias. Como é possível saber isso? Lembrando-nos da principal diferença que Freud traça entre luto e melancolia: a auto-estima afetada, auto-recriminação como punição (“representa seu ego para nós como sendo desprovido de valor, incapaz de qualquer realização e moralmente desprezível; ele se repreende e se envilece, esperando ser expulso e punido. Degrada-se perante todos, e sente comiseração por seus próprios parentes por estarem ligados a uma pessoa tão desprezível.” (Freud, p.278)). Isso pode ser notado logo no primeiro capítulo quando Leiris começa a sua descrição física[38] livre de qualquer sentimento de vergonha, que mais parece autopunitiva do que de fato uma descrição. Freud explica que essa punição ocorre por causa da indentificação narcísica com o objeto frustrador de forma incosciente e que pode até virar uma mania (“maníaco por confissão”, diria Leiris).

Para Lacan, a única forma de lidar com a perda pelo melancólico é através da “incorporação canabalistica” (Lages, p.61) por um ego frágil, esvaziado e em constante depreciação, sendo essa a única forma de renconstruir a sua imagem de si como sujeito. Leiris tenta reagir a essa perda de algo querido através da escrita de si, procurando-se nas lembranças do passado e reconstruindo o seu eu presente. Vai escrevendo e se fazendo durante a escrita: “ao escrever estas linhas, lembro-me de uma coisa sórdida vista recentemente nas proximidades do hospital (....)” (Leiris, 2003, p. 108). Ele espera que sua escrita se torne um ato que possa interferir na realidade e revelar aquilo que o tire da melancolia. “Escrever um livro que representasse um ato foi, em suma, o objetivo que achei (...) ato em relação a mim próprio (...) certas coisas obscuras para as quais a psicanálise, sem torná-las inteiramente claras, havia despertado minha atenção quando a experimentei como paciente.” (idem, p.19).

Assim, o relato acaba se tornando a única forma de antigir a experiência passada e atualizá-lo com o presente, lidando com a perda que é desconhecida pelo melancólico. E é com o melancólico que surge o romance moderno através do “cavaleiro da triste figura” D.Quixote e assume o lugar da narrativa tradicional. Não é mais tempo eternizado, nem há mais sujeito unificado ou estado de espírito para outro relato que não o imerso no romance, num narrador solitário e fragmentado em profundo estado de melancolia.

É o relato que é visto como salvação para Leiris e, ao mesmo tempo, é a marca da sua melancolia e do esquecimento. Havendo, dessa forma, no encontro entre memórias esquecidas, trazidas nas linhas, traumas que vão sendo revelados aos poucos. L’âge d’homme é um livro sobre traumas (experiências que não podem ser explicadas por terem sido muito fortes e que são apenas contadas em fragmentos sobre os quais ele dizia deixar a imaginação agir) formas de explicar as ausências existentes e a própria identidade que foi fragmentada, perdeu a sua unidade e que deveriam ser tratadas pela catarse. Essa questão também explica a “crise da experiência” e a construção da negação do romance retomando essas memórias.

A memória e a consciência não trabalham juntas como alega Freud. Uma excitação não pode ser consciente e deixar traços minmônicos. Sergio Rouanet citando Freud, explica: “A consciência nasce onde acaba o traço mnêmico.”(Rouanet, p.44). Incapaz de conservar rastros, a consciência possui um dispositivo de proteção quando há um excesso de excitação vindo do mundo externo, filtrando boa parte delas. As excitações mais intensas que conseguem passar por esse dispositivo conhecido como Reizschutz, produzem choques traumáticos. Dessa forma, a memória vai armazenando menos traços dentro da cultura de choques. Dado esse fato, o próprio sistema sensorial vai mudando, “concentrado na intercepção do choque, em sua neutralização, em sua elaboração, em contraste com a sensibilidade tradicional, que podia defender-se, pela consciência, contra choques presentes, mas podia também, pela memória, evocar as experiências sedimentadas em seu próprio passado e na tradição coletiva.” (Rounet, p.46).

A palavra trauma surge aqui e lembra o sofridos pelos sobreviventes silenciosos da Primeira Guerra Mundual, analisados por Freud e Benjamin. Sobre essa guerra, Leiris também tem muito pouco a falar no livro: “Estou muito distante, por certo, desse chifre autêntico de guerra, do qual vejo apenas, nas casas destruídas, os menos sinistros efeitos. Mais envolvido materialmente, mais atuante e, assim, mais ameaçado, teria eu considerado a coisa literária com maior superficialidade?” (Leiris, 2003, p.25). Atingiu a idade viril depois de dois anos passada a guerra e sobre a Segunda (e pior) Guerra relata apenas:

Neste nosso ano de 1939, quando os jovens de pós-guerra vêem decididamente oscilar aquele edifício de indulgência no qual se despertavam, esforçando-se por nele colocar, ao mesmo tempo que um autêntico fervor, uma terrível distinção, o autor confessa sem corar que sua verdadeira “idade viril” ainda está por ser escrita, quando tiver se submetido, de uma forma ou de outra, à mesma prova amarga que a geração anterior enfrentou. (...) os tormentos pessoais expostos em A idade viril contam evidentemente pouco: qualquer que tenha sido, no melhor dos casos, sua força e sinceridade, a dor íntima do poeta nada pesa diante dos horrores da guerra, não sendo mais que uma dor de dentes sobre a qual é descabido gemer; que importância teria, no enorme alarido torturado do mundo, esse delicado gemido sobre dificuldades estritamente limitadas e individuais? (Leiris, p.15-17).

 

 Temas que estão em voga no pensamento atual, principalmente, no pós-segunda guerra e vão aparecer nos romances desse período como a falta de uma certeza, uma anti-representação ou auto-representação. A questão da literatura como trauma, parte da visão de uma perda da qualidade utópica da modernidade no pós-Holocausto, provando uma instabilidade e precariedade num mundo em que o trauma se tornou uma regra, diria Andreas Huyssen. Porém, não foi a primeira vez que isso aconteceu, de acordo com Paulo Jorge Ribeiro no texto A era da frustração. O “otimismo iluminista” foi anteriormente abalado pela crise de consciência entre os séculos XVIII e XIX, tendo Schopenhauer e Nietzsche como dois representantes dessa máxima. Vive-se no estado de contra-utopia, desejando revelar o lado sombrio, o outro. É o mal-estar da civilização, que encontra na negatividade, às vezes quase violenta, uma forma de atingir Algo, às vezes de valor até metafísico. Se essa é a forma, qual o conteúdo?

Está ocorrendo uma proliferação de testemunhos, memórias, biografias, ego-historias, blogs... enfim, um imenso mercado de “escritas de si”, que não precisam ser, necessariamente, um registro do eu, como nos informa Foucault, dessa forma, “constitui o próprio sujeito” e “performa a noção de indivíduo”.

Para se livrar do trauma, dos choques, da doença, é preciso escrever. A doença aqui é vista como uma forma de alimentar a literatura, o sentimento de culpa do melancólico o faz pensar o mundo e, no caso de Leiris, na escrita ideal para passar a sua culpa. Aqui a escrita como rememoração se torna uma tentativa de cura. Há um processo de mudança de libido no doente, que sai do desejo físico e vai para outro objeto. No caso de Leiris, sua falta de desejo erótico, que até o faz cometer sadomasoquismo para tentar sentir alguma coisa, vai para a escrita. A literatura serve como terapia, saúde, como uma forma de não morrer.  

 

 

2.6 L’Âge d’homme, erótico e terapêutico:

 

Michel Leiris usava a poesia como refúgio quando começou a escrever, um meio de atingir o eterno e escapar da velhice e recuperar um domínio só seu. Não acreditava em nada, mas podia falar de absolutos e eternos, “e pensava que, pelo uso lírico das palavras, o homem tem o poder de tudo transmutar.” E poeta era demiurgo que deveria operar essa transformação universal, mas um maldito, infeliz, solitário, com fome constante por causa da sua insatisfação que tem na inspiração uma graça momentânea entrando num estado lírico de transe. (Leiris, p.169) Então, seria por essa porta que entraria para “se tratar”.

Em 1929, Leiris começa a trabalhar na redação de Documents, uma revista dirigida por seu amigo, o escritor francês Georges Bataille, conhecido por seus trabalhos multiformes que abrangiam tanto o campo da literatura, como o da antropologia e da filsosofia, trazendo à tona questões transgressoras e eróticas. É Bataille quem vai encomendar a Leiris um romance erótico para uma coleção que estava tentando preparar. Como o própri Leiris disse: “L’origine de L’Âge d’homme, c’est Georges Bataille”, o que explicaria o fato dele estar na dedicatória do livro (apesar de não aparecer na primeira edição). Numa entrevista dada a Paule Chavasse, explica a origem do livro e o fato de não querer escrever um romance erótico:

J’avais d’abord..., je n’avais pas refusé catégoriquement, [mais] je ne me voyais absolument pas écrivant un roman érotique. J’ai fini, comme il insistait - moi-même ça m’ennuyait, comme je l’aimais beaucoup, je l’admirais beaucoup, ça m’ennuyait de ne rien lui donner pour cette collection - j’ai fini par lui faire la proposition suivante : « mais, si je te donne des souvenirs, une sorte d’autobiographie touchant à l’érotisme, est-ce que ça pourrait t’intéresser ? » Il m’a dit « oui » et alors j’ai rédigé le livre en question, dont l’armature - enfin, le fil conducteur - m’a été fourni, comme je le raconte dans le livre, par la trouvaille que j’avais faite par pur hasard [en octobre 1930 (note L.Y.)][39].

 

Quando estava procurando umas iconografias para um artigo que iria fazer para a revista de Bataille, encontrou duas imagens de Cranach destruídas durante a guerra que lhe chamaram atenção: Lucrecia e Judite. “Et ça m’a paru absolument extraordinaire : l’opposition de ces deux figures, la femme qui tue et celle qui se tue, et c’est comme ça que m’est venue l’idée de répartir, en somme, entre ces deux figures, ces deux figures opposées et complémentaires, ce que j’avais à dire dans L’Âge d’homme”.

O projeto de Bataille acabou não saindo por causa do medo da censura por parte dos editores e, em seguida, Leiris foi aconselhado por Bataille a fazer terapia:

“Je buvais beaucoup et souvent d’une façon désagréable (avec, enfin, des soûleries absolument ignominieuses), j’étais assez malheureux, j’étais dans des angoisses terribles au sujet de mon travail (quand il me fallait, par exemple, remettre à une date un article pour Documents), bref ça n’allait pas du tout, et je suis allé me faire psychanalyser suivant le conseil que Bataille m’avait donné. Et alors ça, cette psychanalyse, ça m’a donné l’idée de reprendre ce livre qui était resté - je ne dirai même pas sur le chantier, puisqu’il était considéré comme achevé - il était resté dans mes tiroirs ; et ça m’a donné l’idée de le reprendre en le développant, en mettant d’autres choses que des choses simplement érotiques. Et c’est devenu L’Âge d’homme.”[40]

 

Há uma firme relação da escrita com a noção de sujeito que vai da Antigüidade até hoje. Foucault explica que na Antigüidade o “eu” era assunto e a “escrita de si” contribuía para a formação de si. Acrescenta que a escrita, de todas as formas de “treino de si por si” (askêsis) como meditação, abstinência, silêncio, escuta, memorização, exame de consciência,... foi muito importante por um bom tempo nessa questão, pois operava a transformação de verdade em ethos. Era um exercício pessoal do pensamento sobre si mesmo, fundamental para “a elaboração dos discursos recebidos e reconhecidos como verdadeiros em princípios racionais de ação.” (Foucault, p. 133).

Assim, apareceu o livro, durante a terapia com o Dr. Borel, que ainda contou com duas datas de criação distintas: a primeira é de dezembro de 1930 e a segunda do fim de 1934 à novembro de 1935. A redação dos capítulos não foi cronológica, assim como, não é a narrativa de seu livro, apesar de se tratar de uma autobiografia. Foram escritos os capítulos 2, 3, 4 e 6 à partir do texto de 1930  e a redação dos novos capítulos 1, 5, 7 e 8. Ele ainda retrabalhou algumas expressões porque estava achando muito mal escrito o livro. O título também sofreu várias alterações. Lucrèce, Judith et Holopherne, (versão erótica de dezembro de 1930 e manuscrito nos cadernos da versão definitiva), Antiquités de Damoclès Siriel, Suite et fin: additions et refontes. No seu diário, outubro de 1934: “Titres de livres : Haut mal (poèmes) / L’Âge d’homme”. Em 27 de outubro de 1935: “Commencé à taper Lucrèce, Judith et Holopherne (la version définitive)”. A mudança de título se dará em novembro de 1935. Mas ele vai ainda mudar de L’Âge d’homme, para uma variação, L’Âge d’homme mûr. Numa carta de Marcel Moré em 19 de janeiro de 1936, leu: “L’Âge d’homme mûr, cela ne dit pas grand chose; cela rappelle plutôt une collection parue il y a quelques années sur les quatre âges de l’homme, où avaient collaboré de vagues Maurois, Mauriac ou Morand”.[41]

É ainda na redação da Documents que conhece Marcel Griaule, que vai propor fazer parte de uma das maiores expedições francesas de etnografia no século XX: a missão Dakar-Djibouti (mai 1931-février 1933). “(...) Aconselhado por meu médico e pensando eu mesmo que me faltava ter vivido um pouco na dureza, aproveitei a ocasião para fazer uma longa viagem e parti para uma temporada de dois anos na África, como membro de uma missão etnográfica.”(Leiris, 2003, p.185). Então, incentivado pelo psicanalista, Leiris participa da expedição, que durou dois anos e percorreu a África do oceano Atlântico até o Mar Vermelho, como “secretário-arquivista” da missão. Ao terminar a expedição, trouxe consigo a profissão de etnógrafo (que vai exercer até 1971 no Musée de l'Homme) e seu primeiro livro importante L'Afrique Fantôme (1934), que marca o nascimento de uma prática: misturar autobiografia (que já vinha sendo trabalha em um diário que mantinha antes da expedição) e etnografia. É nesse livro que acaba se expondo pela primeira vez com revelações e sem traços de heroísmo. Ao voltar, ainda continua por um tempo a terapia com o Dr.Borel e a escritura de L'Age d'Homme.

A partir dessa relação do livro com a terapia, poderíamos dizer que o livro seria um ato para liquidar tudo e ver claramente a si mesmo, para librerar o que está inibido, criando uma espécie de catarse, uma “busca de uma plenitude vital que não se poderia obter antes de uma catharsis, uma liquidação, da qual a atividade literária – e partircularmente a literatura dita ‘confissional’ – é um dos mais cômodos instrumentos.”(Leiris, 2003, p.16). Para que houvesse catarse era preciso que “essa autobiografia adquirisse uma certa forma, capaz de exaltar a mim mesmo e de ser entendida pelos outros, tanto quanto possível.” (idem, p.18) para isso, contava com uma atenção rigorosa dada à escrita e símbolos.

É interessante pensar que a catarse é a palavra que Aristóteles usa na Arte Poética para falar dos efeitos da tragédia e, ao longo de seu livro, o próprio Michel Leiris se mostra envolvido com esse tema. A tragédia é vista como uma imitação de uma ação de caráter elevado, de eventos, isto é, uma imitação não pela narrativa, mas por autores representando ao invés de recitando, com tal capacidade contraditória em momentos impactantes, ou seja, quando um personagem inocente é condenado, a ponto de sucitar emoções fortes e purificá-las através da catarse. É a catarse a finalidade da tragédia grega, isto é, purificar as emoções, uma forma de debater problemas que não tinham sido esclarecidos, como faziam os escritores de diários na literatura cristã, que tem o valor da purificação.

Em A escrita de si, de Foucault, fala-se nessa escrita purificante: “A Vita Antonii de Atanásio apresenta a notação escrita das acçoes e dos pensamentos como um elemento indispensável da vida ascética.” (Foucault, p.129). Deve-se escrever e observar para não cometer mais os pecados, colocando a escrita como o lugar da ascese, pois escreve-se de acordo com os movimentos da alma. “A escrita constitui uma prova e como que uma pedra de toque: ao trazer à luz os movimentos do pensamento, dissipa a sombra interior onde se tecem as tramas do inimigo.”(Foucault, p.131). É uma espécie de askesis, como explica Foucault, um adestramento de si por si mesmo. Epicteto falava que devia meditar, escrever e treinar como execicio pessoal, associando a escrita à meditação, a uma forma de pensar sobre si mesmo, que o prepara para enfrentar o real. Mas isso pode ser perigoso, pois expõe o que estava sendo escondido por detrás das milhares de máscaras que o homem cria.

A catarse acaba se envolvendo com a idéia do relato autobiográfico, principalmente, por causa da sua característica de transformação (uma mudança interna que deve acontecer) e da necessidade de intensidade quanto ao processo de experiência pelo qual passa o autor. De que adianta escrever uma autobiografia se o autor é o mesmo de antes? Autobiografias são escritas para mostrar uma mudança num longo processo ou até dar uma esperança quanto a falta de experiências que se está vivendo ou de se explicar o que é. E como sugeria Deleuze: cada ser humano deve ser um laboratório de experiências únicas, na mais completa absolutização da diversidade e da diferença.

No artigo de Blanchot, o livro de Leiris é visto como um ponto de partida da empreitada “literatura como tragédia”, por causa do jogo perigoso pelo qual se expõe Leiris “debaixo dos mapas” - não a ponto de ser mortal - e com um grande valor estético através da figura do escândalo:

Écrire n’est qu’un jeu sans valeur, si ce jeu ne devient pas une expérience aventureuse, où celui qui la poursuit, s’engageant dans une voie dont l’issue lui échappe, peut apprendre ce qu’il ne sait pas et perdre ce qui l’empêche de savoir. Et puis, écrire, oui, mais si écrire rend toujours plus malaisé l’acte d’écrire, tend à lui retirer les facilités que les mots ne cessent de recevoir des mains des plus habiles.[42]

 

Os temas da tragédia sempre fascinaram Leiris, desde pequeno quando ia ao teatro com os pais. Podia ser a tragédia através de figuras bíblicas ou da Antiguidade, heróis do teatro como Fausto ou Sigfried, e até mesmo o toureiro. Não importava. O que interessava era o teor revelador de “temas diretores e interpretes por meios dos quais se introduzia uma grandeza aparente ali onde eu sabia muito bem não haver nenhuma.” (Leiris, 2003, p.18). Sempre se sentiu atraído por alegorias e lições e enigmas que essas imagens parecem conter.  Havia algumas imagens que ele relata em L’Age d’homme que o impressionaram mais quando criança: queda de Icaro e Faetonte fulminado por Júpiter. Trazer essas figuras era uma forma de Leiris encontrar algo mítico em sua vida, afinal, sempre vira de forma melancólica no poeta a visão de Ícaro, Prometeu e Faetonte, os “condenados às penas eternas”. Porém, as imagens que mais marcaram-no foram as do quadro de Cranach: Lucrécia e Judite. Imagens do que acreditava faltar a ele, substâncias da sua melancolia.

O autor acaba contando-se através de múltiplas referencias teatrais e figuras clássicas e alegorias e imagens como de Lucrecia e Judite, que fazem pensar sua situação. Isto é, insere personagens literários para avançar sobre um terreno intimo, dominado pelas questões sexuais e com revelações que poderiam chocar as pessoas da época. Leiris criou um modo próprio de fazer literatura e forjar mitos universais a partir da sua própria historia e com uma exigência de originalidade profunda.

Mas a obra não pode ser reduzida a isso. Um aspecto central da obra seria o movimento da língua para mostrar as transformações do ser, para levantar cada máscara. Ainda mostra as maneiras de pensar da sua infância e adolescência e a marca dos julgamentos morais de sua época. É também um trabalho de psicólogo em que o ato da escritura sirviria como uma forma de ver melhor a si mesmo e libertar-se de certas coisas (catarse).

Do seu tempo como surrealista, ainda utilizou na obra a psicologia freudiana vista como “um meio cômodo de se alcançar a um plano trágico, tomando-se por um novo Édipo” (Leiris, 2003, p.20), aquele que no fim, se sacrifica furando os próprios olhos. Essa exposição de Leiris funcionaria como um sacrifício, furaria seus olhos e escreveria tudo o que vem nas suas rememorações, sem poder analisá-las para media-las através de um olhar mais complacente. Deixaria que o leitor fizesse isso ao ler seus tormentos.

Havia certa repugnância, por parte de Leiris, ao tratamento psicológico, mas aceitou por causa da angustia interior que o dominava. “E daí me veio a idéia de escrever estas paginas, a principio, simples confissão baseada no quadro de Cranach e com o objetivo de liquidar, formunlando-as, um certo número de coisas cujo peso me oprimia; sem seguida, resumo de memórias, visão panorâmica de todo um aspecto de minha vida.” (Leiris, 2003, p.40). Fez tratamento porque sentiu algo de doentio nas suas ações de mulheres e bebedeira, sadomasoquismo como meios de alcançar uma realidade mais intensa. O tratamento foi como uma “faca na ferida”, ele queria se libertar do temor do castigo da responsabilidade, por isso, longe da idade viril estaria. Voltou da viagem da África e retomou ainda algumas sessões. “O que nela aprendi, principalmente, é que, mesmo através das manifestações à primeira vista as mais heteróclitas, nos vemos sempre idênticos a nós mesmos, que há uma unidade numa vida e que tudo se resume, não importa o que se faça, a uma pequena constelação de coisas que tendemos a reproduzir, sob diversas formas, um número ilimitado de vezes.” (idem, p.186) se sente no meio de dois mundos, como Judite, num mundo real que domina e devora pelo sofrimento e medo, ou mundo fantasma que se dissolve nas mãos e destrói como Lucrecia apunhala, sem jamais possui-lo. Ele achava que dadas as voltas da sua vida, já tinha atingido a idade viril. Mas em 1939, as beiras de uma nova guerra, confessa que “verdadeira idade viril ainda está por ser escrita” (Leiris, 2003, p.15).

O livro começa com uma descrição física que vai da cabeça “um tanto grande para o meu corpo” e pernas curtas, acrescida de manias um tanto reveladoras, viagens, trabalho, aversões, sexo,... (Leiris, 2003, p.27). Segue sem ordem cronológica[43], indo e voltando no tempo, às vezes num mesmo parágrafo, em outras de um capítulo para outro. Ele começa pelas grandes descobertas da sua infância como a morte, a velhice, o suicídio, o infinito, a alma... em seguida, organiza o livro em torno das figuras de Lucrecia e Judite (que correspondem a idéia da mulher no amor, “je ne conçois guère l'amour autrement que dans le tourment et dans les larmes; rien ne m'émeut ni ne me sollicite autant qu'une femme qui pleure (Lucrèce), si ce n'est une Judith avec des yeux à tout assassiner”). Ele ainda se identifica com Holopherne (la victime) e a Sextus Tarquin (l'agresseur). Na época da reedição de seu livro em 1946, Leiris escreve em seu diário 1922-1989: “Un livre comme L'Age d'Homme fait de moi une ville qui livre son plan et ses clés”. [44]

E termina dizendo que não conseguiu atingir l’âge d’homme[45], com um sentimento de fracasso que o fará escrever mais e mais obras autobiográficas até se sentir satisfeito. Ou, pelo menos, vivo e viril enquanto as escreve. Pois, dado o risco que possuem, são os únicos instrumentos capazes de retirá-lo do seu estado de melancolia e transformá-lo naquele que consegue “fazer de sua vida uma obra, sua obra” (Barthes, p.165), l’homme sans age; imortalizado por si próprio nas páginas de livros e diante dos olhos dos seus leitores, ficcionalmente ou não.


3. Concluindo, Michel... quem?

 

Michel Leiris, apesar de ter escrito mais de cinco livros autobiográficos, é mais conhecido por seus textos etnográficos do que por suas autobiografias. Isso explica, inclusive, o estranho fato de ter demorado a encontrar seu livro na livraria. Sua obra estava na estante de Antropologia e não em (Auto)Biografia e Memórias como eu havia imaginado.

Mesmo assim, tendo seu nome reafirmado na etnografia, ele escreveu de forma corajosa e bela a sua própria vida, principalmente L’Âge d’homme, difererindo do canônico Proust (com sua escrita que nos deixa na dúvida se estamos lendo um romance ou uma autobiografia). Assim pensa François Mauriac, no seu artigo de 1958, intitulado N’en plus parler.

J’accorde que Proust ne s’est pas livré à nous comme Gide, dans une confession directe et ininterrompue et qu’À la recherche du temps perdu comporte plus d’une interprétation. Mais se fut-il “anatomisé”, nous n’en eussions pas moins ajouté, chacun, notre grain de sel : voyez ce qui se passe aujourd’hui à l’égard de Michel Leiris, par exemple, qui porte l’auto-investigation au-delà de ce que nous aurions cru possible et supportable. Et pourtant, sur Michel Leiris, qui dit tout de lui-même et devrait décourager le commentaire, le commentateur déjà pullule.[1] (link)[2]

 

 

Sabemos pouco dele, pelo menos, antes de ler seus livros. Estranhamente, não é um nome conhecido do grande público apesar de ser o introdutor de um novo modo de criação moderna e fazer uma espécie de negação do romance. Aliette Armel, a escritora e ensaísta francesa que escreveu uma biografia de Leiris (e material não faltou para isso), revela o autor e comenta esse desconhecimento:

De L’Afrique fantôme à Miroir de la tauromachie, en passant par La Néréide de la mer Rouge et jusqu’au  Sacré dans la vie quotidienne, Michel Leiris a mis en place peu à peu son mode personnel d’écriture: une manière très moderne de forger des mythes universels à partir de sa propre histoire et d’une quête de la vérité, dont l’exigence constitue son originalité profonde. L’Âge d’homme est la formulation la plus évidente de ce nouveau mode de création. Mais sa parution en pleine guerre en limite considérablement la diffusion. L’image de Michel Leiris, surréaliste et poète devenu ethnologue, perdure. L’autobiographie n’est pas encore attachée au nom de cet auteur totalement inconnu du grand public. (link idem)

 

Quem era Michel Leiris? O mesmo homem que lemos? Ele era poeta (aprendizado com Max Jacob, poeta francês ligado aos simbolistas e surrealistas), etnógrafo, crítico de arte e ensaísta e escritor de autobiografias. Seu nome ainda pode ser associado ao surrealismo, ao Collège de Sociologie e ao existentialismo (era amigo de Sartre) e às autobiografias. Dos livros que seu nome ornamenta a capa estão livros de crítica de arte sobre importantes artistas do século XX como Francis Bacon, Joan Miró, Pablo Picasso, livros de poesias, declarações coletivas e autobiografias. Isso parece repetitivo (autobiografias), escrever tantas autobiografias. Porém, ao final, ele pode ser tudo, menos repetitivo. Sua escrita não permite isso, dado seu apuro literário.

Leiris mesmo com as várias autobiografias publicadas, continuou a escrever, como se com medo da morte, uma morte em vida, a morte da sanidade talvez. Sua escrita não o protegeu da morte física que veio buscá-lo em 1990, mas o protegeu da morte artística. Seu nome perdurou (mesmo que pouco conhecido, como dito acima). E ainda perdura em uma imensa quantidade de manuscritos autobiográficos que estava organizando antes de morrer. Isso mostra que a escrita ainda não se esgotara, nem a sua necessidade de escrever, de experenciar através do texto a sua própria vida e ser Michel Leiris. Pois, ao final de seu texto, L’Age d’homme, podemos concluir que Michel Leiris era de fato Michel Leiris quando escrevia sua autobiografia, pois não havia ninguém para julgá-lo nestes instantes a não ser a sua própria arte.

Photos de LeirisAinda podemos nos perguntar mais uma vez, ao terminar de ler sua obra, quem era esse Michel Leiris que nos é apresentado. E provavelmente, se estivesse vivo, ele responderia: Torero. Mas prefiro ter como resposta algo que apenas a escritura desse trabalho pôde me fazer vivenciar: l’homme sans age.

Bibliografia:

 

Barthes, Roland. A preparação do romance, vol.II. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

 

Benjamin, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1996.

 

Deleuze, Gilles. Crítica e Clínica. São Paulo: ed.34, 1997.

 

Foucault, Michel.  A escrita de si. In: O que é um autor? Ed. Passagens, 1992.

Freud, Sigmund. Luto e melancolia. In: A história do movimento psicanalítico, artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos, vol.XIV. Rio de Janeiro: ed. Imago, 1976.

Gagnebin, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: ed. Perspectiva, 2004.

Lages, Susana Kampff. Walter Benjamin, tradução e melancolia. São Paulo: Edusp, 2002.

Leiris, Michel. A idade viril. São Paulo: Cosac e Naify, 2003.

Leiris, Michel. Lê sacré dans la vie quotidienne. In: Le Collège de Sociologie (1937-1939), Denis Hollier (org.). Ed.Gallimard.

Rouanet, Sergio Paulo. Édipo e o Anjo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.

 

Links:

Almeida, Giuliano Cézar Mattos. Nietzsche e a morte de Deus. link: http://www.eticaefilosofia.ufjf.br/8_1_giuliano.html (acessado em 19 de junho de 2007)

Caduc, Evelyne. L’Âge d’homme de Michel Leiris et la notion d’authenticité.  Link: http://revel.unice.fr/loxias/document.html?id=97&format=print (acessado em 19 de junho de 2007)

 

Frycer, Jaroslav. Le démon de l’autobiographie. Link: http://www.phil.muni.cz/rom/erb/frycer03.pdf (acessado em 19 de junho de 2007)

 

Gouvêa, Ricardo Quadros. A Morte e a Morte da Modernidade: Quão Pós-moderno é o Posmodernismo? Link: http://www.fcsh.unl.pt/edtl/G.htm (acessado em 10 de junho de 2007)

 

Lis, Jerzy. Du nouveau roman à la nouvelle autobiographie. http://www.phil.muni.cz/rom/erb/lis03.pdf (acessado em 19 de junho de 2007)

 

Oliveira, Yvana Coutinho. Identidade, subjetividade e sintoma na Era Contemporânea. Link: http://www.unifor.br/hp/revista_saude/v16/artigo8.pdf (acessado em 19 de junho de 2007)

 

Yvert, Louis. L’Âge d’homme: notice bibliographique, extraits du Journal, reception. Link: http://www.michel-leiris.com/HH/article.php3?id_article=157 (acessado em 10 de junho de 2007)

 

 

[1] Le Figaro littéraire, n° 627, 26 de abril de 1958, pág. 1 e 4.

 

[2] http://www.michel-leiris.com/HH/article.php3?id_article=157



[1] Utilizo o título em francês ao invés do em português traduzido como A Idade Viril.

 

[2] Grifo meu.

 

[3] De certa forma, esse pensamento nem sempre é certo, como veremos ao longo do trabalho. Pode-se usar a vida real e recriar em cima dela sem que haja comprovação de que se tenha vivido aquilo. As autoficções seriam uma espécie disso.

[4] Em coro ao pensamento de Paul Ricoeur, “le monde déployé par toute œuvre narrative est toujours un monde temporel et que le temps devient temps humain dans la mesure où il est articulé de manière narrative.” Link: http://www.michel-leiris.com/HH/auteur.php3?id_auteur=78

 

[6] Can one identify a work of art, of whatever sort, but especially a work of discursive art, if it does bear the mark of a genre, if it does not signal or mention it or make it remarkable in any way? (...) A text cannot belong to no genre, it cannot be without or less a genre. Every text participates in one or several genres, there is no genreless text; there is always a genre and genres, yet such participation never amounts to belonging.” (link: http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/G/generos_literarios.htm).

 

[7] Link: http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/G/generos_literarios.htm

 

[8] A autoficção é um gênero que se encontra entre a autobiografia e o romance, dando o ao leitor o direito de se perguntar o que é aquilo que ele está lendo. E como saber ? Há algum mecanismo que possa avisar ao leitor  no texto, ou ele seria obrigado a levantar a cabeça das páginas e detetivar no mundo externo ao livro ? Acredito que a melhor forma de pensar na ficção não seria através de mecanismos do texto, mas pelo que há fora do livro.

 

[9] Falar sobre si mesmo poderia ser lido como uma negação do romance, pois, tradicionalmente, o referencial do romance é a ficção e se há algo de si no texto, estaria restrito a escolhas textuais ou experiências pessoais adaptadas para o gênero.

 

[10] Lejeune em Le Nouveau Roman des années 1950–1960 arrive à l’âge de la retraite. A l’âge de l’autobiographie. De retour à soi. Link: http://www.phil.muni.cz/rom/erb/lis03.pdf

 

[11]Link: http://www.phil.muni.cz/rom/erb/lis03.pdf

 

[12]Link: http://www.michel-leiris.com/HH/article.php3?id_article=157

[13] Alusão ao Mrs. Dalloway.

[14]Jean-Paul Sartre, em 1943, no seu estudo Un Nouveau mystique sobre a experiência interior de Bataille, escreve: “Enfin M. Bataille a passé tout près du surréalisme et personne autant que les surréalistes n’a cultivé le genre de l’essai-martyre. La volumineuse personnalité de Breton s’y trouvait à l’aise : il démontrait froidement, dans le style de Charles Maurras, la précellence de ses théories, et puis soudain il se racontait jusque dans les plus puérils détails de sa vie, montrant les photos des restaurants où il avait déjeuné, de la boutique où il achetait son charbon. Il y avait, dans cet exhibitionnisme, un besoin de détruire toute littérature et, pour cela, de faire voir soudain, derrière les monstres “par l’art imités”, le monstre vrai, sans doute aussi le goût de scandaliser, mais surtout celui de l’accès direct. Il fallait que le livre établît entre l’auteur et le lecteur une sorte de promiscuité charnelle. Enfin, pources auteurs impatients de s’engageret qui méprisaientle calme métier d’écrire, chaque ouvrage devait être un risque à courir. Ils révélaient d’eux, comme Leiris dans son admirable Âge d’homme, ce qui pouvait choquer, déplaire, faire rire, pour donner à leur entreprise toute la gravité périlleuse d’un acte véritable. Les Pensées, les Confessions, Ecce Homo, Les Pas perdus, L’Amour fou, le Traité du style, L’Âge d’homme ; c’est dans cette série de « géométries passionnées » que L’Expérience intérieure prend sa place.” (Cahiers du Sud, octobre-décembre 1943, repris dans Situations, tome I, Gallimard, 1947, pp. 144-145) Link: http://www.michel-leiris.com/HH/article.php3?id_article=157

 

[15] Link: http://www.michel-leiris.com/HH/article.php3?id_article=157 

 

[16] Carnets de la drôle de guerre, septembre 1939 - mars 1940, nouvelle édition augmentée d’un carnet inédit, éd. Arlette Elkaïm-Sartre, Gallimard, 1995, p. 351. Link: http://www.michel-leiris.com/HH/article.php3?id_article=157

[17] Link: http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/D/decadentismo.htm

 

[18] Les Années surréalistes ; correspondance 1916-1942, éd. Françoise Levaillant, La Manufacture, 1990, p. 429. Link: http://www.michel-leiris.com/HH/article.php3?id_article=157

 

[19] Falarei mais adiante sobre isso.

 

[20] Link: http://www.michel-leiris.com/HH/auteur.php3?id_auteur=78

 

[21] Marcações minhas.

[22] Link: http://www.fcsh.unl.pt/edtl/index.htm

 

[23] Como forma de mostrar a impossibilidade de exprimir uma “verdade” de si através da escrita, Sergue Doubrovsky, surge em 1971 com a auto-ficção (que implica numa nova visão de sujeito).

 

[24] O imaginário é definido por Lacan como um registro fundamental da estrutura mental que se movimenta entre o real e o simbólico, que cria um registro de ilusão e identificação. É como se Leiris fizesse do seu livro um espelho para deixar de ser fragmentado, como a criança de seis meses se vê de acordo com a “fase do espelho” de Lacan. Ele quer se reconhecer na imagem e, como a criança, não o consegue de dentro, mas só quando se externaliza. Acaba, através de uma imagem ficcionalizada (Gestalt), se indentificando, “identificação no sentido pleno que a psicanálise dá a esse termo: a saber, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem”, avisa Lacan. Link: http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/I/imaginario.htm

 

[25] Na Antiguidade não podia haver autobiografias por causa da mentalidade da época, pois não havia reconhecimento do eu individual.  A autobiografia é associada ao individualismo burguês do Ocidente pós-Iluminismo. 

 

[27] páginas.156-157. Link: http://www.michel-leiris.com/

 

[28] Vogue, New York, vol. 106, n° 1, July 1945, pp. 84-85, repris en français dans les Œuvres romanesques, Gallimard, 1987 (« Pléiade »), pp. 1919. Link: http://www.michel-leiris.com/HH/article.php3?id_article=157

 

[29] De acordo com o segundo tomo de La Règle du Jeu, Fourbis (1955), durante a Segunda Guerra Mundial, ficou numa região situada entre Algéria e Marrocos, e teve um rápido caso com uma prostituta Khadija.

 

[30] Nome dado àquela capa que o toureiro usa.

[31] Também no livro Magia e técnica, arte e política.

 

[32] Essa concepção de melancólico engajado é de Walter Benjamin. Freud via o melancólico como alguém sem interesse pelo mundo, sendo incapaz de qualquer saber, já que o mundo exterior não o interessa. Para Benjamin não, o melancólico é divinatório. À melancolia está atrelada a capacidade divinatória, de acordo com Benjamin ao analisar a época barroca em Origem do drama barroco alemão. A culpa é via para o saber, de acordo com Benjamin, e nela vê uma pulsão do contato cognitivo com as coisas através de uma contemplação alegórica.

 

[33] Ou seja, isso corresponde ao que trabalhei no item 2.3 do trabalho sobre a construção de uma autobiografia (fracassará porque nem tudo que está nela é verdade).

 

[35] “Assim, quando o amor se introduzia em meus pensamentos era sob a forma de tentação, e eu não podia considerá-lo a não ser como uma espécie de queda. Foi no entanto nessas condições – e como que se tratando de uma semi-traiçao ou de um começo de renúncia – que me casei.” (Leiris, 2003, p.173).

[36] Link: http://www.michel-leiris.com/HH/article.php3?id_article=157

 

[38] É sobre isso que escreve Jean Lescure, em Poésie et liberté, histoire de Messages, 1939-1946, (texto que evoca seu encontro com Leiris no fim de 1941): “J’avais été fasciné par L’Âge d’homme. Je sentais, sans bien savoir comment ça se passait, que l’écriture y était le lieu d’une transmutation en poésie non seulement du quotidien de l’auteur mais des choses mêmes. Toute la réalité du monde, pour y être évoquée, n’en avait pas moins subi un changement d’état. Quasi alchimique. En rencontrant Leiris pour la première fois, je ne manquais pas de le ‘reconnaître’ tel que dans les premières lignes de son livre : ‘plutôt petit’, un peu raide et les ongles rongés ‘jusqu’à l’os’. Soucieux d’élégance il m’avouera plus tard avoir été jaloux de la mienne en ce temps où les tissus anglais étaient rares, mais où les soins attentifs d’une mère m’en avaient d’avance suffisamment pourvu. Je me sentis du premier coup d’autant plus proche de lui que j’eus le sentiment qu’en ralliant Messages, et donc en choisissant de courir les risques que toute personne, se mêlant de ‘Résistance’, acceptait, il venait de trouver ce dont il déplorait que cela lui eût si longtemps fait cruellement défaut, quelque chose ‘pour quoi il serait capable de mourir’”. Link: http://www.michel-leiris.com/HH/article.php3?id_article=157

 

[41] Link: http://www.michel-leiris.com/HH/article.php3?id_article=157

[42] Link: http://www.michel-leiris.com/HH/article.php3?id_article=157

[43] A cronologia é utilizada para uma distribuição de entradas temáticas (que variam e são indicadores da evolução da sua personalidade) e lembranças da infância e significações que estao relacionadas ao mundo das representações mentais e afetivas do escritor. (no item 2.1 falo mais sobre isso)

 

[45] No prefácio, escrito depois de terminar o livro.