quarta-feira, 30 de julho de 2008

Conclusão:“IT’S ALIVE! IT’S ALIVE!”

(o título faz  menção ao famoso grito de Dr.Frankenstein, no filme de 1931, Frankenstein,quando, pela primeira vez, o monstro se mexe)

Poderíamos nos apropriar da tenebrosa imagem do médico e do monstro famosos de Mary Shelley, para mostrar o que se insurge diante de nós quando misturamos o olhar do estrangeiro, brincadeira de criança e muita imaginação: o escritor. Aquele capaz de possuir a fórmula do Dr.Jeckyll e transformar-nos (nós leitores) em Mr.Hydes. Deixar insurgir dentro de nós o que havia de mais oculto, mais temido e escondido durante a leitura de seus textos[1].

E o que contém essa fórmula? Um dos ingredientes sabidos é a linguagem.

Pode-se encontrar um mundo novo por trás dos objetos, mas é preciso fazer esse mundo falar uma língua especial para que seja notado.

Deluze, no prólogo de Critica e Clinica escreve que Proust dizia que o escritor inventa uma língua nova, uma língua estrangeira no interior da língua cotidiana, normalmente usada, banalizada, pois ela coloca em ação mudanças que normalmente não são percebidas no interior dessa. Ele quebra o mutismo gerado por aqueles que não conseguem mais se expressar (que não vêem o que mais pode ser expresso) por não enxergarem por entre sua fragmentação o que há por debaixo do seu estado de anestesia, melancolia, comodidade. E escrever acaba se tornando ser estrangeiro na sua própria língua e ser capaz de captar coisas novas e brincar com as palavras que falam e ocultam ao mesmo tempo. Escrever “não é contar as próprias lembranças, suas viagens, amores e lutos, sonhos e fantasmas”. (Deleuze, 1997 b, p.12).

Essa recriação de significações ou resgate de significados antigos está associada ao olhar que se deve ter, o olhar que perverte, que desorganiza a ordem superficial e apolínea da linguagem. Este é o olhar do estrangeiro e o da criança. Muitas vezes, por não terem o domínio comum da língua[2] ou por possuírem um desejo de sair do assunto banal através da derivação (derivar: não ter uma âncora que prenda), são vistos como pessoas de fora e são automaticamente excluídos ou reprimidos.

Contudo, ambos são capazes de dar novas faíscas de vida ao cadáver apodrecido e fragmentado que jaz sobre a mesa de laboratório.



[1] Freud introduz uma grande questão em Escritores criativos e devaneio. Ele parte da idéia de que as fantasias alheias nos criam repulsa, então, como o autor consegue nos atrair e criar prazer com as suas? Ele acha que é esse O segredo do escritor: “A verdadeira ars poética está na técnica de superar esse nosso sentimento de repulsa, sem duvida ligado às barreiras que separam cada ego dos demais. (...) O escritor suaviza o caráter de seus devaneios egoístas por meio de alterações e disfarces, e nos suborna com o prazer puramente formal, isto é, estético, que nos oferece na apresentação de suas fantasias.” (Freud, 1976 a, p.158). Ou seja, gostamos de uma obra de arte porque ela nos libera das tensões da nossa mente, como se o autor nos permitisse aproveitarmos nossos próprios devaneios sem vergonha, o nosso lado mais obscuro.

 

[2] A importância do estrangeiro e da criança, principalmente, está nesse balbuciar de palavras, de novas descobertas através da linguagem e a sua experimentação. Para Agamben, a infância constitui um experimentum linguae, uma recuperação da pura expressão, pois transforma a experiência sensível em linguagem (Souza, 2006e,p.151). Já o adulto parece um boneco automatizado que fica repetindo a mesmice e que não possui acontecimentos memoráveis que possam ser traduzidos em experiências narráveis.

 

3. VAMOS DAR VOLTA E MEIA, MEIA VOLTA VAMOS DAR:

Andar em círculos, como na Ciranda Cirandinha[1], dar voltas e meia-voltas e depois terminar no mesmo lugar com a última meia volta dada, pois não parece haver para onde fugir dessa roda-viva e acaba-se chegando no mesmo lugar de antes. Andou-se em círculos, o anel de vidro quebrou, o amor que era doce se acabou. O que restou a esse homem fragmentado, possuidor de cacos de vidro e amores azedos? Resta apenas entrar na roda, dizer um verso bem bonito, dar adeus e ir-se embora (como poderia fazer o escritor).

O homem atual, inserido nesse roda mundo, nessa ciranda, muitas vezes nem sabe que está repetindo os passos dos seus antepassados, que também viveram cirandas mágicas que foram repassadas por gerações. Seria captar esse aspecto a função do olhar estrangeiro, de quem está de fora da ciranda. Não comprometido com a dança, pode notar os movimentos e até relacioná-los com uma origem. Quem sabe nas rodas místicas dos celtas? O estrangeiro não precisa construir identidades, mas pode mostrar como as nossas foram constituídas. Ver uma tradição escondida sob a pintura de milhares de épocas.

Dar a meia volta é voltar ao início, querer resgatar o que havia antes, a tradição (tida como amarra contra a liberdade e autonomia do homem moderno) que foi amaldiçoada pela modernidade:

A dinâmica da democracia moderna será a da corrosão progressiva dos conteúdos tradicionais, minados aos poucos pela idéia de auto-instituição, que a Revolução Francesa trouxera à baila com particular vigor. O princípio da liberdade consiste em fundar a lei sobre a vontade dos homens, subtraindo-a tanto quanto possível, portanto, à autoridade das tradições. (link Mancebo)

 

O termo tradição vem do latim traditio, que significa “acção de entregar ou dar (alguém ou alg. coisa); entrega, transmissão” (Torrinha, p.56). No dicionário de latim, tradição também representa: narração, narrativa[2]. É justamente através da narração tradicional, segundo Benjamin, que se transmite uma sabedoria, uma experiência que ajuda a manter uma identidade, uma coesão individual e coletiva. Então, com o fim da experiência, da criação (Erfahrung), também veio o fim da narração tradicional. No século XIX, no auge do capitalismo, no lugar da experiência foram gerados novos valores individuais, como a vivência, recriação (Erlebnis). Dentro desse aspecto, Benjamin explica que o romance (surgido com a modernidade) tomou o lugar vago da narrativa e se tornou uma forma de expressar essa nova experiência de si[3]. Isto é, suas constantes mudanças estruturais e seu hibridismo conseguem seguir o ritmo dessas sociedades em constante mudança e repensadas o tempo todo. Aí está a grande diferença entre a sociedade moderna e a tradicional, esta ultima não vive uma mudança constante.

Anthony Giddens argumenta que: ‘nas sociedades tradicionais, o passado é venerado e os símbolos são valorizados porque contêm e perpetuam a experiência de gerações. A tradição é um meio de lidar com o tempo e o espaço, inserindo qualquer atividade ou experiência particular na continuidade do passado, presente e futuro, os quais, por sua vez, são estruturados por práticas sociais recorrentes (Giddens, 1990, pp. 37-8)’(link Hall).

 

Enquanto Benjamin vê o resgate da tradição para um diálogo com a modernidade como solução para os problemas da “crise da experiência”[4], ele também acredita que é preciso resgatar na figura da criança aquele que de fato pode experenciar algo. Por que a criança e não o adulto?

O adulto, de acordo com Benjamin em Experiência, usa esta como uma máscara, sem, de fato, tê-la vivido. Já a criança tem a chance de viver essa experiência (o tempo de criação) através da brincadeira[5] e da fantasia. Ainda não adaptada ou sob as exigências do mundo adulto, a criança pode constituir um mundo de significação própria, mas ele é todo baseado nas suas pequenas e recentes experiências (são as únicas que conhece). Ou seja, enxerga a realidade como um laboratório de possibilidades. E é nela onde procura elementos e os retira do seu contexto (subverte a ordem estabelecida), trazendo-os para suas brincadeiras. Dessa forma, na maioria das vezes, reproduz o que vive na vida diária[6]. E não há um esgotamento porque a criança recorda, revive, reelabora e combina formas diversas sempre criando coisas novas. Ao inventar uma história, por exemplo, ela retira elementos das experiências vividas e as combina.

Não são as coisas que saltam das paginas em direção à criança que as vai imaginando – a própria criança penetra nas coisas durante o contemplar, como nuvem que se impregna do esplendor colorido desse mundo pictórico. Diante de seu livro ilustrado, a criança coloca em prática a arte dos taoístas consumados: vence a parede ilusória da superfície e, esgueirando-se por entre tecidos e bastidores coloridos, adentra um palco onde vive o conto maravilhoso. (Benjamin, 2002 a, p.69).

 

O adulto não consegue o mesmo porque a sua imaginação está adaptada à realidade e não quer questionar nem mudar as ordens das coisas para descobrir novos usos. Ou seja, não consegue combinar coisas e viver novas experiências. Seu sensorial está enfraquecido e não se sente capaz de fazer relações extra-sensoriais (que emanam dos objetos e alimentam a imaginação) como a criança faz entre objetos animados e inanimados, por exemplo.

A criança tem uma capacidade de retirar do que o adulto vê como comum algo mágico e propício para novas descobertas. Nesse aspecto, ela e o estrangeiro em suas andanças combinam. É na potência do olhar imaginativo da criança que, inclusive, um brinquedo se torna brinquedo:

 As crianças, com efeito, têm um particular prazer em visitar oficinas onde se trabalha visivelmente com coisas. Elas se sentem atraídas pelos detritos, onde quer que eles surjam (...) nesses detritos, elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas assume para elas, e só para elas. Com tais detritos, não imitam o mundo dos adultos, mas colocam os restos e resíduos em uma relação nova e original. Assim, as crianças constroem seu mundo de coisas, um microcosmos no macrocosmos. (Benjamin, 1996 c, p.238).

 

Walter Benjamin diz que o melhor olhar para analisar a realidade é o da câmera. Estando atendo ao seu objeto, sabe que a realidade não se esgota naquilo que é oferecido ao olhar. Por um fragmento pode-se abrir uma perspectiva para o mundo e um instante pode ser captado e eternizado novamente na memória. A criança também (tanto quanto os surrealistas) tem a capacidade de descobrir nos objetos a via para outra compreensão da realidade, um novo olhar crítico. Na brincadeira criança transforma objetos em outros, como, por exemplo, uma folha de papel em branco pode virar a carta a uma namorada ou uma mesa pode ser uma casinha para bonecas. Seu olhar penetra nas coisas e descobre nelas uma vida nova, uma nova função. Um pouco diferente do olhar do estrangeiro, que parece, em sua grande escala, restituir antigas ligações, significados passados.

A criança quando olha uma coisa não é para julgá-la seguindo padrões anteriores:

mas para perceber a diversidade de sentidos e as possíveis correspondências dadas nas cores. O artista e a criança intuem, fantasiam, criam, modo que expressão que colocam a possibilidade de reconstruir a experiência. É como se Benjamin percebesse na visão intuitiva da criança algo que prefigura a Erfahrung perdida pelo homem moderno, agora vivendo nos limites da Erlebnis. (link Schlesener[7]).

 

É preciso, então, voltar a ser criança para cair na roda, tentar virar o mundo. Se não conseguir isso, espera-se, pelo menos, que gere um verso bem bonito.

Nesse ponto entra, então, a função do escritor. Tanto para ele quanto para a criança ou para o estrangeiro há a revelação de um saber oculto vindo dos objetos banais. Através desse “dom” o artista questiona os sentidos dados na (pos)modernidade e confere um novo significado ao objeto, da mesma forma que faz a criança nas suas brincadeiras (luta entre mágico e racional, dionisíaco e apolíneo). Freud diz que a fantasia é para satisfazer a pessoa insatisfeita, “a pessoa feliz nunca fantasia”, isso explicaria porque o escritor, sobretudo após a modernidade, está numa constante busca para encontrar novas relações no que vê diante de si (é por isso escreve?)[8].

Se “essa faculdade de compor e combinar o antigo com o novo, tão facilmente observada nas brincadeiras infantis, é a base da atividade criadora no homem” (Souza, 2006 d, p.148) presente na criança e no escritor[9], então:

será que deveríamos procurar já na infância os primeiros traços de atividade imaginativa? (...)  Acaso não poderíamos dizer que ao brincar toda criança se comporta como um escritor criativo, pois cria um mundo próprio, ou melhor, reajusta os elementos de seu mundo de uma nova forma que lhe agrade? (Freud, 1976 a, p.149).

 

Freud supõe que a obra literária como devaneio é continuação ou substituto da brincadeira da criança por causa dos processos de imaginação que envolve tanto a criança quanto o escritor. Este cria mundo de fantasia que leva a sério e onde investe grande emoção, mas é capaz de separá-lo da realidade, como faz a criança ao brincar. Esta, ao crescer, parece renunciar à brincadeira, mas o adulto não abdica de um prazer já experimentado, como comenta Freud. Há uma troca no objeto de prazer. O adulto pode parar de brincar, de criar elos incomuns com objetos reais, mas continua fantasiando, construindo “castelos no ar”, através de devaneios. Na maioria das vezes estes são escondidos dos outros por vergonha. E justamente esse unheimlich é trazido à tona pela figura do estrangeiro, para que as pessoas possam contrapô-los a sua existência.

A narrativa tradicional (fonte de sabedoria que Benjamin quer tanto resgatar) surge como uma forma de fazer insurgir tanto no contador de histórias quanto naqueles que o ouvem, memórias e experiências que haviam há muito sido perdidas. Para o psicanalista está claro que a experiência infantil está associada a uma memória que pode reaparecer anos depois e gerar uma obra[10]:

Uma poderosa experiência no presente desperta no escritor criativo uma lembrança de uma experiência anterior (geralmente na sua infância), da qual se origina então um desejo que encontra realização na obra criativa. A própria obra revela elementos da ocasião motivadora do presente e da lembrança antiga. (Freud, 1976 a, p.156-7).



[1] Cantiga infantil:

Ciranda, Ciradinha, Vamos todos cirandar
Vamos dar a meia volta, Volta e meia vamos dar

O anel que tu me deste, Era vidro e se quebrou
O amor que tu me tinhas, Era doce e se acabou

Por isso dona (nome de uma das crianças), Entre no meio desta roda
Diga um verso bem bonito, Diga adeus e vá se embora

 

 

[2] Também pode significar traição, que é uma entrega.

[3] O romance psicológico, marca do alto modernismo, mostra para Freud como o escritor foi capaz de dividir seu ego e se auto-analisar em egos parciais e “personificar as correntes conflitantes de sua própria vida mental por vários heróis.” (Freud, 1976 a,  p.156).

 

[4] Benjamin vê como positivo a perda da experiência pois dela deve surgir um recomeço, uma reconstrução, gerando novas criações. Para se recuperar a experiencia é preciso buscar na modernidade objetos de reavivaçao da memoria, o que deve ser feito através do exercicio da arte, linguagem e experiência infantil.

 

[5] Vygotsky acredita que ao observar uma criança brincando, se é capaz de enxergar como funciona a criação, a construção da realidade.

 

[6] Muitos psicólgos infantis observam as crianças durante brincadeiras para poderem captar essas experiências reproduzidas e depois tratá-las.

[7] O mundo da criança em alguns escritos de Walter Benjamin: http://www.prograd.ufpr.br/nesef/artigos/novo/Anita.Benjamin.doc

 

[8]A fantasia também esta relacionada ao tempo e ao sujeito, possui data de validade. “O trabalho mental vincula-se a uma impressão atual, a alguma ocasião motivadora no presente que foi capaz de despertar um dos desejos principais do desejo. Dali, retrocede à lembrança de uma experiência anterior (geralmente da infância) na qual esse desejo foi realizado, criando uma situação referente ao futuro que representa a realização do desejo. O que se cria então é um devaneio ou fantasia, que encerra traços de sua origem a partir da ocasião que o provocou e a partir da lembrança.” (Freud, 1976 a, p.153).   

 

[9] A linguagem preservou o parentesco entre brincar e a criar literatura. Spielen, em alemão, é brincar e representar, como a palavra play em inglês.

 

[10] Essa poderia ser uma explicação para o fato dos traumas de infância estarem enraizados na memória enquanto outras situações são apenas vivenciadas (e depois descartadas) na vida adulta. O primeiro contato, a primeira impressão, comuns na infância, pois a criança não está costumada ao mundo ainda, podem criar várias e importantes memórias. Ver Édipo e o Anjo de Ruanet.

 

2.OLHARES ERRANTES:

O olhar se faz na modernidade, de acordo com Julio Diniz, em O olhar (do) estrangeiro – uma possível leitura de Clarice Lispector, impregnado daquele que olha, sem neutralidade, havendo, assim, uma confusão entre o eu que olha e o objeto olhado. Para não haver essa confusão seria necessário um olhar de fora, que não estivesse imerso ou acostumado com os objetos que olha e fosse capaz de captar algo novo (como faz o escritor ao observar o mundo em que vive). Algo como o olhar estrangeiro.

Normalmente o estrangeiro é morto, roubado, maltratado, ou divinizado (potencial mágico[1]) pelas sociedades em que ele aparece, de acordo com Van Gannep. Isso pode acontecer tanto por causa de um temor provocado pelo que é novo e diferente trazido pelo estrangeiro, quanto pelo que ele pode ressuscitar e que havia sido morto ou escondido (provoca o sentimento de unheimlich[2]). O medo surge porque o estrangeiro questiona quando não queremos o que escondemos[3].

Por isso o estrangeiro nos é importante hoje para pensarmos o que estamos vivendo e que Benjamin chamaria de “crise da experiência”. Vive-se um momento de anestesia provocado, talvez, pelo sentimento de melancolia do século retrasado, em que o homem se viu incapaz de substituir a perda de alguma coisa por si mesmo (como queriam os iluministas) e isso acabou gerando um estado de desânimo e uma revolta inconsciente autopunitiva[4]. O que antes era uma experienciação passou a ser, junto com a velocidade da modernidade, uma tentativa de evitar sentir, gerando, assim, os famosos silêncios pós-guerra que Benjamin comenta. O homem havia se condicionado a não mais experenciar[5] coisas que lhe trariam mais desgosto e quando estas surgiam numa grande dose, não sabiam como se colocar diante delas, classificá-las. A visão também foi danificada e não se consegue mais enxergar com olhos já acostumados a esse estado de primeiro plano. O olhar da figura do estrangeiro, da platéia que assiste[6], é importante porque é justamente nesse ponto que ele se desvirtua e consegue captar a profundidade da cena, pois não está inserido no palco que foi montado para esse homem sem experiência. São seus olhos, puxados ou azulados, que vão questionar e fazer um levantamento do que havia sido perdido.

Diniz também fala de uma perda no sentido das imagens que construíram nossa identidade e o olhar estrangeiro surge como forma de alcançar isso, sendo capaz de perceber o que não é visível aos que tem os olhos acostumados, aquilo que foi banalizado. É a busca de outra possibilidade, pois o estrangeiro consegue olhar as coisas com novidade e como se fosse pela primeira vez, resgatando algo original como faz a criança ao brincar com objetos dos pais:

inversamente simétrica a ordem social (...) estrangeiro olha o exterior de sua fronteira como necessidade de traduzir o visto, o vivido. Traduzir – adaptar, codificar, identificar, enfim, buscar sentido. Na busca da unidade perdida, o seu olhar recolhe o que na fala se apresenta como aprendizagem do verbo. (Diniz, p.30).

 

Baseando-me em Walter Benjamin, aproveito a figura desse estrangeiro como aquele que indica um caminho para que o homem consiga trabalhar os novos valores recebidos ou criar novos valores pós-perda. O estrangeiro será capaz de ter uma dupla leitura, já que não tem os olhos treinados e possui uma posição aberta a novas possibilidades (senão, nem teria saído de seu lugar de origem e se transformado nesse errante que é). Poderá enxergar o princípio oculto que se esconde por detrás de objetos, debaixo da ponta do iceberg[7] que o levará até as profundezas do conhecimento.

 Em A doutrina das semelhanças, Benjamin fala de uma dupla leitura para se atingir a base do iceberg. Toma como exemplo o astrólogo e o astrônomo para explicar esse tipo de leitura. O astrônomo é aquele que vai analisar as dimensões visíveis das estrelas com seus aparatos mecânicos e tentar entendê-las cientificamente. O astrólogo (muitas vezes acusado de ter perdido o senso) é aquele capaz de analisar e ainda “ouvir estrelas”. E o que dizem? Falam sobre o destino aos olhos do poeta[8]. Essa dupla leitura é fundamental para o resgate da perda inconsciente que traz o sentimento de melancolia no homem moderno. O estrangeiro, junto ao poeta, vão tentar “ouvir as estrelas” e traduzi-las em alguma linguagem diferente (quem sabe, inspiradas nas estrelas?).

Mesmo assim, é preciso saber o que fazer com essas identidades e não deixá-las serem mais no meio de outras tantas. Apesar de se estar tentando criar novas ou resgatar antigas identidades, mesmo que através de um “saudável e bondoso” sentimento de politicamente correto, estas identidades continuam num processo de desestabilização como as outras, provando que ainda há a fragmentação no homem e as rachaduras por debaixo do manto aparentemente estável da (pós)modernidade por onde elas escorrem. Stuart Hall chama esse descentramento de “crise de identidade”[9]. No meio dessa crise, pode-se dizer que as referências foram perdidas e que, mesmo assim, o homem luta de alguma forma resgatar essa perda, lutando, muitas vezes, contra os meios de massa, acusados de estarem dilapidando uma cultura outrora rica e produtiva, mas que todos sabem que também é uma criação do presente em fragmentação.

Mas, apesar do homem pós-moderno adotar várias identidades como sua, neste hibridismo cultural ele sempre estará buscando a sua identidade no seu regionalismo, pois como o olimpiano concebido por Edgar Morin, o sujeito pós-moderno, necessita de reconhecimento, mesmo que seja somente de sua cultura, ele necessita saber que ela está sendo preservada ou globalizada em outros Estados-nações (link Silva[10]).

 

Muitas vezes essas identidades que tanto busca para obter um reconhecimento (alheio ou de si, para que não se sinta à deriva novamente) parecem contraditórias entre si e incoerentes com o eu móvel da pós-modernidade (pois identidades são imóveis e restritivas)[11]. Julia Kristeva escreve que a falta de estabilidade em nós e a busca por identidades ou papéis nos torna nômades, estrangeiros para nós mesmos. O estrangeiro aqui ganha uma nova concepção: não é mais externo, não é aquele que vai indicar o caminho. O estrangeiro que aparece no texto Tocata e fuga para o estrangeiro, é aquele que vive em nós, a face oculta da nossa identidade. Surge uma hipótese: talvez vestidos desse estrangeiro que consigamos sair da lama da melancolia. Ele deve ser o que tem a lembrança do que se deixou, mas busca a sua felicidade no devir, na sua própria inconstância, alojado em si e na sua solidão, o ser ideal para o momento fragmentário em que vivemos. Kristeva nos apresenta o estrangeiro como o único ser capaz de andar por estas ruínas deixadas pela modernidade, pois não tem uma centralidade subjetiva, seu eu não pertence a ninguém nem a si mesmo, nem precisa fixar raízes (apenas o faz quando tem uma paixão e provisoriamente). Pode ser melancólico e sentir falta do que ficou para trás, do que perdeu, mas continua em frente, sentindo-se livre e sempre em busca de novos encontros. Ele tem uma biografia, uma vida feita de provas, porque os atos são acontecimentos, tudo ganha um peso de escolha, surpresa, ruptura, adaptação, estratagema. Não há o automatismo que Benjamin critica na sociedade moderna e ressaltado por Chaplin em Tempos Modernos. Isso permite que o estrangeiro tenha uma capacidade excepcional de análise:

Ao mesmo tempo não deixa de julgá-los um pouco limitados, cegos. Pois os seus anfitriões desdenhosos não possuem a distancia que ele possui, para se ver e para vê-los. O estrangeiro fortifica-se com esse intervalo que o separa dos outros e de si mesmo, dando-lhe um sentimento altivo, não por estar de posse da verdade, mas por relativizar a si próprio e aos demais, quando estes se encontram nas garras da rotina da monovalência. (Kristeva, p.14).

 

Apesar dessa possibilidade um tanto interessante de ser tornar estrangeiro ao invés de ficar dando identidades colhidas pelo olhar do estrangeiro ao homem em crise, há ainda aqueles que acreditam que possuem uma identidade atualmente. Stuart Hall explica que isso é uma ilusão: “Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora ‘narrativa do eu’.”(link Hall[12]). E cada vez mais, com os processos de tecnologia e informação mais dinâmicos e múltiplos, entramos em contato com mais identidades possíveis, tornando-nos híbridos, variáveis, temporários e podendo ser atingidos, modificados pelo mundo exterior ao invés de sermos os modificadores. “O sujeito pós-moderno, conceptualizado não tem uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma ‘celebração móvel’: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam.! (HALL, 1998, p.12-13)” (link Silva).

Esse estrangeiro, surgido no lugar do flanêur (atropelado pela modernidade)[13], mostra que finalmente a modernidade se fez na pós-modernidade. O homem pós-moderno recebeu o direito de desconstruir valores e criar seus novos valores, suas novas medidas, como queria o homem moderno. No entanto, isso ainda faz com que ele se sinta perdido, pois apesar de tanto ter desejado essa liberdade, quando ganha ela dá medo devido a sua proporção excessiva e incontrolável e a incerteza que carrega junto já que o que havia antes era ilusão, inclusive, o homem estar no controle de tudo.

A modernidade queria dar o controle ao homem e provou, no seu fim, que ele não tinha nem consciência de si, como poderia controlar e ser medida para alguma coisa se, inclusive, essa coisa não deve ser mais essencial e permanente? Como medir algo que se transforma o tempo todo?

Isso acabou gerando um movimento de retorno. Enquanto o homem moderno procurava desligar-se da tradição, que via como uma amarra ao seu desenvolvimento, o homem pós-moderno tenta desesperadamente resgatar de alguma forma os pontos deixados para trás. Através da figura do estrangeiro, ditar-se-iam novas possibilidades ou insurgiriam antigas que já foram acostumadas ao nosso olhar. O que nem o homem moderno nem o pós-moderno ainda conseguiram foi mudar a necessidade de representação que ainda corrói, fazendo procurar uma identidade (ou papel), que pode estar, inclusive, no passado.



[1]O potencial mágico que Van Gannep dá a umas das possibilidades de se servirem ao estrangeiro remete ao próprio conceito de misticismo que até hoje reveste a concepção de escritor, aquele que tem um DOM, uma INSPIRAÇAO na hora de criar.

 

[2] A figura do estrangeiro está associada ao sentimento de estranho que Freud classificou no seu ensaio O Estranho. Estranho para Freud é o assustador, aquilo que provoca medo e horror ao mesmo tempo que remete ao conhecido, velho (nem tudo que é novo e não familiar é assustador). O que é familiar, agradável, conhecido, caseiro, habitual, íntimo, (heimlich, onde heim é lar) e também segredo, escondido, oculto de onde vem o efeito unheimlich, ou seja, o estranho poderia ser aquilo que foi reprimido pela mente e está no inconsciente e sai para a luz. O estranho aparece quando questões relativas à infância (época do nosso desenvolvimento individual) ou a um pensamento antigo considerado ultrapassado que é reconfirmado. Isso mostra que a estranheza existe dentro de nós mesmos, como diria Van Gannep e Kristeva e que o estrangeiro a imerge com a sua presença.

 

[3] Essa concepção nos remete, mais uma vez, ao paralelo nietzschiano do apolíneo perfeito e total que esconde debaixo de si uma sombra, o fragmentário lado dionisíaco.

 

[4] Freud explica sobre a questão da autopunição durante um estado de melancolia no texto Luto e Melancolia.

 

[5] O texto de Sergio Paulo Ruanet, Édipo e o Anjo, fala sobre esse processo dentro do aparelho psíquico do homem moderno.

 

[6] O mundo é um teatro. As pessoas comuns, sem experiência (a perdida, de acordo com Benjamin) estão no palco se recriando através de identidades diversas (papéis, diria Gumbrecht). A cada peça, um novo papel. Mas como o ator, as personagens-pessoas (a raiz de ambas as palavras é a mesma, derivam de personae: máscara) estão atuando de acordo com o roteiro. Não podem variar muito do que foi entregue para elas, para não confundirem. Se aprofundarem muito e acabarem criando uma confusão nas marcações de cena, podem ser despedidas, ganhando um lugar cativo na platéia. Sorte daquele ator que tem essa oportunidade! Sentará ao lado do estrangeiro que ocupa a platéia. Este, por causa da sua posição em relação ao palco, tem a felicidade de poder enxergar melhor toda a peça do que o ator em cena ou nos bastidores, ocupados apenas com seus papéis. Mais profundamente e sem amarras e marcações dadas pelo seu papel (não o tem, pois ele não é personae), o estrangeiro não se estringe e pode levantar questões, seja através de aplausos ou vaias, ou por críticas escritas. 

 

[7] A imagem do iceberg é utilizada por Benjamin em A doutrina das semelhanças, quando mostra que a ponta é a única coisa que se é percebida pelos olhos conscientes, anestesiados de fuligem e avermelhados-mareados (por causa de um congestionamento de choro pela morte de algo que não se sabe o que é).

 

[8] Alusão à poesia de Olavo Bilac, Ouvir estrelas.

 

[9] As velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno. A assim chamada ‘crise de identidade’ é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social. (HALL, 1998, 7)” (link Silva).

 

[10] Identidades culturais na pós-modernidade. Um estudo da cultura de massa através do grupo Casaca: http://www.bocc.ubi.pt/pag/silva-sergio-salustiano-identidades-culturais.html.

 

[11] Para resolver isso, Gumbrecht acha melhor dar o nome de papéis, como no teatro, devido a essa incompatibilidade de estabilidades.

 

[13] Comentário de um aluno na aula do professor Júlio Diniz na PUC-Rio. 

1. SER OU NÃO SER... NÃO É MAIS UMA QUESTÃO, É UM FATO:

Um mundo em fragmentação (culturas, gêneros, classes, etnias, nacionalidades...), sem bases sólidas fornecidas por uma centralização, gera hoje uma incessante busca por uma identidade (o que ser ou não), algo fixo, que retire o homem desse Caos pluriforme em que está numa aparente deriva, sob o julgo da moira[1]. O que se está vivendo, considerado uma etapa típica da pós-modernidade, é um processo que foi tomando forma durante a modernidade a partir da centralização do sujeito e ganhou força no século XX. Essa mudança pode ser pensada a partir da própria palavra modernidade. A sua origem vem da palavra modernus, que apareceu somente no século VI. O radical mod- ou med- é o mesmo de palavras como medomai (em grego significa pensar, ter em mente) ou medicina, medicamentum, modicus (este em latim: o que está na medida, modesto, medíocre). O termo, de acordo com Emile Benveniste e citado por Adriano Rodrigues (link[2]), indicaria paragem ou estancamento de um curso desregrado (hyrbis[3]) dos fluxos do corpo e do comportamento ou dos acontecimentos. É um “retorno à justa medida” para conter o que depois poderia ganhar proporções perigosas e incontroláveis. Se moderno viria desse estancamento da hybris, colocando a sua centralidade no sujeito e na racionalidade, o pós-moderno seria deixar correr de novo, abrir as comportas para a hybris, isto é, a desmedida, o excesso, o grotesco, a mistura de formas (hibridismo). Aspectos estes que foram encontrados ao se analisar de perto e com bastante acuidade o homem moderno que não se via mais como integrado a uma Totalidade e sujeito apenas a si mesmo, tomando-se como medida de tudo e de todos.

Para o pós-modernismo chegar a esse ponto de hybris, foi preciso, antes de qualquer coisa, que o homem ultrapassasse o métron (a medida humana, a si mesmo). Nietzsche escreve sobre isso ao falar sobre o trágico em O nascimento da tragédia. Para o filósofo alemão, das duas forças que existem, a apolínea[4] está relacionada ao princípio de individuação, um processo de criação do indivíduo realizado pela experiência da medida e consciência de si. Contudo, a brilhante e radiosa aparência apolínea é uma proteção contra a sombra, ao mesmo tempo, que é uma ocultação por ser uma aparência, uma ilusão. Dessa forma, o princípio de individuação estaria atrelado a uma ilusão ao tentar esconder determinados traços que o cortariam ao meio e quebrariam com sua concepção íntegra e brilhante de um homem como a sua própria totalidade, concepção essa trabalhada no pensamento iluminista. (link Machado[5]).

Ou seja, após a dessacralização do mundo, durante o Iluminismo, o homem criou para si uma visão de individuo centrado, unificado, racional, com uma identidade e capaz de ser a medida de todas as coisas, fonte de sentidos para o mundo e para si mesmo. Porém, como explica Deise Mancebo em Modernidade e Produção de Subjetividades, essa concepção de homem se tornou problemática:

O sujeito psicológico é dividido, sua autonomia é apenas ilusória, sua vida racional e consciente subentende uma desconhecida dimensão inconsciente e irracional. Produz-se um paradoxo, conforme Salem (1992), o eu reina, apresenta-se sacralizado, mas não é dono de si. Simmel (1977), Sennet (1988) nos fornecem elementos conceituais e históricos para a compreensão deste aparente paradoxo. A análise por um lado, do racionalismo iluminista, com um certo acabamento, na cultura francesa, do século XVIII e, de outro, do romantismo alemão, do século seguinte, apresenta-nos a oposição entre dois tipos de individualismos, ou duas facetas do paradoxal homem moderno: o indivíduo jurídico da cidadania e dos direitos e deveres universais e o indivíduo psicológico, interiorizado e propenso ao auto-cultivo. (link Mancebo[6])

 

O homem iluminista possuía a racionalidade como ordem e contra esse preceito surge o homem romântico buscando uma identidade através de relações (outrora cortadas no Iluminismo) com a natureza e a irracionalidade (sentimentos e instintos e inconsciente). Dessa forma, surgem dois tipos de indivíduos criados pela modernidade: o cientista e o poeta, que geram hoje o homem político (o homem-partido, hoje discutido por vários teóricos). Saiu-se da subjetividade coletiva do século XVIII para a subjetividade individual do século XIX[7], o gérmen da pós-modernidade. Mas ambos representavam, como deixa claro Mancebo, a igualdade e a busca de uma singularidade absoluta (princípios da modernidade).

É ainda no século XIX que aquilo que antes era visto como a totalidade pelo pensamento iluminista cedeu lugar a uma “imanência secular”, o que abriria as portas para uma visão aprofundada e radical do individualismo:

significado dos fenômenos e a ‘verdade’ de cada um não se referiam a qualquer ordenação prévia, mas lhes era imanente, captável no imediatismo das aparências. Neste último universo - da imanência secular - o ‘eu’ passa a ser a única totalização possível, uma totalização fugidia, uma busca eterna e inalcançável. Mesmo o mundo externo passa a ser considerado como uma construção, ou melhor, uma descoberta que se dá, através de uma lente interna, de dentro do homem para fora. Tem início uma era de ‘subjetivismo radical’, de ‘individualismo desenfreado’ e de ‘busca da auto-realização individual’. (link Mancebo).

 

Com o mundo social e o cultural e o de si mesmo se tornando construções do olhar subjetivo, o homem sentiu-se perdido, incerto das coisas. Transformou-se num ser melancólico, com sensação de fin-du-siécle, sem Deus e sem Autor. E a hybris (relacionada à outra pulsão nietzschiana, a dionisíaca), a desmedida ocultada foi ressurgindo por debaixo da erosão da figura apolínea iluminista, desintegrando o eu fixo e único, durante esse processo de desvalorização do mundo e de si mesmo. Para que a melancolia pudesse passar e fosse restituída a reconciliação de pessoas entre si ou com a natureza (à procura de uma harmonia universal, de uma Unidade, fugindo da divisão, em busca de uma totalidade que não está em si, mas está no Todo) seria preciso o estado dionisíaco de embriaguez, o estado alterado de si, a sua desmedida, a pós-modernidade[8].

Uma das respostas causadas por essa mudança dentro da própria modernidade que gerará a pós-modernidade é a necessidade de uma identidade (de um ser ou não ser), de estar atrelado a alguma raiz (afinal, a tradição foi banida pela modernidade como ponto central do homem). Essa busca não é coisa recente. Já havia desde Platão uma tentativa de apreender uma identidade nas coisas. Ou quando nações se viam em crise como momentos de repressão ou derrota (a Alemanha derrotada por Napoleão, o Risorgimento na Itália, a guerra entre França e Prússia em 1870, etc) como Gumbrecht nos lembra em seu texto Minimizar Identidades: “emerge o desejo de identidade, identidade talvez que nunca existiu, mas que você busca no momento de derrota.” (Gumbrecht, p.121).[9]

Mas o sentido ontológico que se buscava na Antiguidade e nessas épocas de construção de uma identidade nacional foi perdido, de acordo com Gumbrecht e foi-se notando, com o surgimento da psicologia e a idéia de processos de identificação que a criação da identidade através da posição do outro, do olhar[10].



[1] Espécie de destino cego.

 

[3] Híbrido, palavra que tem aparecido na maior parte dos textos acadêmicos atuais, normalmente, relacionada à palavras como multiplicidade, pluralidade, heterogeneidade, sincretismo, desterritorialização, construção/desconstrução de identidades, interculturalidade, marginalidade, gêneros e intertextualidade dentro dos estudos da literatura, vem do grego hybris (desmedida, o excesso, o ultrapassar as fronteiras – entre divino e humano, geralmente - pelo qual os heróis trágicos eram punidos) e significa um ultraje por causa da miscigenação (mistura) que violava as leis naturais na época da Grécia Antiga (o fato de hoje considerarmos a palavra híbrido sinônima de irregular, anormal, grotesco, anômalo vem por causa dessa definição grega). Atualmente não estamos preocupados em ultrapassar fronteiras entre elementos, nem com a miscigenação, pois vivemos um período de pós-modernidade em que a alteridade e a valorização do diverso são os deuses.

 

[4] O deus Apolo é utilizado como símbolo para essa concepção por sua relação com o Oráculo de Delfos em cuja entrada está escrita a seguinte frase: Conhece-te a ti mesmo.

 

[6] Modernidade e produção de subjetividades: http://www.fae.unicamp.br/br2000/trabs/2010.doc

 

[7] Época em que o grotesco ganha importância e aparece no prefácio de Cromwell de Victor Hugo.

[8] É importante ressaltar aqui a pós-modernidade como um processo do estado dionisíaco e não o seu resultado.

 

[9] Naquela época não havia a visão de construção de uma identidade como hoje temos. Para as pessoas daquela época o que faziam era retomar identidades que já existiam num sentido de essência, ontológico.

 

[10] “O território interno de cada um não é soberano; é com o olhar do outro que nos comunicamos com nosso próprio interior.” (Souza, 2006 a, p.66).

 

Introdução

Não é um fenômeno recente a tentativa de captar a mente do escritor, o que o faz escrever, se há um gênio por trás disso, uma musa ou um esforço massivo. Esse assunto hoje pode ser retomado com o reaparecimento da figura do autor no campo dos estudos da literatura, contudo, longe do endeusamento anterior como o da Era Romântica[1] e sem os devidos direitos que cabiam a posição de autoria, ou seja, o autor não é mais a Voz Suprema, o Senhor, o Pai do Texto, aquele que dá um significado definitivo, aquele que possui o controle da obra e suas significações. É mais uma voz no meio de outras tantas. Essa desfragmentação dos poderes do autor pertence a uma escala maior de descentralização que vem acontecendo ao longo da modernidade, principalmente, nas últimas décadas do século XX (com os estruturalistas e a visão de hibridismo e intertextualidade da pós-modernidade).

Contudo, ainda persiste aquele ar de mistério e divindade atrelado à figura do autor e a sua composição, cujo interesse se fez em Freud no texto Escritores Criativos e Davaneio (1908). Neste ensaio sobre o escritor criativo (leia-se escritor de ficção) o psicanalista austríaco se pergunta de onde vem o material com o qual o escritor compõe a sua obra e como funcionaria esse processo e chega a comparar o escritor, esse “estranho ser”, a uma criança.

A partir das perguntas que Freud se faz e as análises de Walter Benjamin sobre a criança como o ser único capaz de restituir a experiência perdida na modernidade, este trabalho se inscreve numa busca pelo escritor atual que está inserido no meio de uma “crise de identidade”. Procuro, primeiro, mostrar que processo de centralização do sujeito e depois a sua fragmentação como experiências da modernidade e pós-modernidade e em seguida aplicar visão do estrangeiro para recuperar o que está perdido entre as rachaduras desse desmantelo. Por último, trago à tona a criança perdida em cada um como a chave de ouro do escritor.



[1] Época em que a subjetividade moderna havia sido esculpida e juntamente com a interioridade se faziam fundamentais na arte. Principalmente com a originalidade exigida pelo movimento Sturm und Drang, que mostrou a importância da autoria. O autor era um demiurgo capaz de fazer surgir da folha em branco um mundo próprio e sem uma ajuda externa de cunho divino (sem musas ou sem gênios). O autor criava por si mesmo sua obra, sendo o seu único responsável. 

Receita de Escritor: olhar de estrangeiro, brincadeira de criança e imaginação à gosto

“O homem é o sonho de uma sombra”

Píticas, 8, 95-97.

 

“Um poeta contemporâneo disse

que para cada homem existe uma imagem

que faz o mundo inteiro desaparecer;

para quantas pessoas essa imagem

não surge de uma velha caixa de brinquedos?”

Walter Benjamin.


Esse trabalho é uma análise acerca da figura do escritor nos dias atuais, criando articulações com as figuras do estrangeiro e da criança. Como base para esse texto foram lidos os seguintes pensadores: Freud, Walter Benjamin, Nietzsche, Gumbrecht, Van Gannep, Julia Kristeva, Stuart Hall,... entre outros.