domingo, 5 de outubro de 2008

NUM LABIRINTO EM BUSCA DO MODERNISMO

“A literatura como labirinto:

construção vã e insensata,

mas, possivelmente, vital”

(PEYRONIE, p.573)

 

INTRODUZIDOS NO LABIRINTO:

 

A literatura é como um labirinto, diria Borges, que nos leva em múltiplas direções, dando-nos várias possibilidades de escolhas, provocando encruzilhadas e, muitas vezes, nos levando ao erro através de jogos metalingüísticos. Como o labirinto, sua construção é artificial, mas complexa, a ponto de trabalhar tanto com o espaço quanto com o tempo no papel e na vida real.

Há sempre o risco de voltar ao ponto de partida (eterno-retorno) quando se entra num labirinto – seja ele de ficções ou não -, pois ele é o oposto a idéia de um percurso protegido por algum deus, como é no mito. Contudo, entrar nesse labirinto e, mesmo voltando ao início, não ter sofrido nenhuma mudança, é não ter por ele passado. Como diz Ernesto Sabato, se o livro não muda ninguém, nem seu autor, então, ele é inútil. Pensar e ler é entrar no labirinto e arriscar-se a se perder nele. Por isso, é preciso seguir em passos prudentes para não se perder com facilidade nessa construção tortuosa capaz de desorientar e levar a um sofrimento, já que a perda, normalmente, é associada ao sofrer. Inclusive, labyrinthus pode significar labor intus (dentro é sofrimento).

Esse sofrimento existencial que podemos encontrar no labirinto é muito bem representado pelos grandes autores modernos, que se fazem de labirintos narrativos ou lingüísticos para que possamos sentir a perda e o sofrimento do homem moderno - caracterizado em suas personagens - dentro desse turbilhão de novidades que surgiram no fim do século XIX.

Um dos princípios da razão moderna é a possibilidade de escolher livremente o caminho dentre os quais o mito havia apenas aberto. Seguindo pelo labirinto a multidão vai, sem um deus como guia, pois se foi feito o óbito da entidade suprema. Dessa forma, os modernos se acham a todo instante ameaçados ao estar vagando indiferentemente e sem qualquer significação enquanto antes havia uma meta, havia um deus-guia. Assim vagam as personagens Dostoievski, Kafka, Proust, Joyce, Beckett e Borges. Ou será que somos nós que assim vagamos por elas?

É no período moderno que o artista ganha novos contornos, despindo a casaca de moralista burguês para se pintar cores abstratas de instrumento independente de descobertas. A arte deixa de ser uma representante dos fatos sociais e do mundo exterior, para exprimir a si própria, seus métodos de composição e processos. Dessa forma, a arte se tornou um símbolo da própria existência e foi se tornando, cada vez mais, obscura, enigmática e labiríntica.

 

JOYCINIANO OU NÃO-JOYCINIANO? EIS A FALTA DE QUESTÃO

 

Brincando de Joyce, podemos pensar em Joyce como sinônimo para o modernismo. Por que isso? Porque James Joyce é um exemplo excepcional de modernismo ao ter criado um estilo moderno – ou seja, inovador – de escrita e personagens que traduzissem o sentimento de moderno que Baudelaire, no fim do século XIX, procurava nas imagens de Constatin Guys. As crias de Joyce espelham o fim das tradições e convenções, buscam realizações em meio a uma vida cosmopolita vazia e efêmera e em meio à falta de uma paz interior – devido às consciências sujeitas às perdas e usurpações, num tempo e espaço contrariando suas próprias leis com outras leis mais recentes.

Em latim, modernus significa de modo, recente. Contudo, o Modernismo que aqui vamos averiguar não é tão moderno assim. Na verdade, ele é moderno, mas num aspecto diferente do sinônimo de contemporâneo. A modernidade que aparece no Modernismo é a de uma transformação, quebra com o passado para criar algo novo e totalmente recente. Dessa forma, podemos dizer que o Modernismo é uma fabricação da Modernidade[1], isto é, um produto de reflexões, de descobertas, que vão acabar tomando forma nas artes, principalmente na literatura, criando mudanças evidentes no campo cultural após a Primeira Guerra Mundial, mas que já começam a aparecer nos últimos anos do século XIX e nos primeiros do século XX (chamado de alto-modernismo).

O Modernismo pode ser considerado um método para acabar com o vazio de valores em que se via a humanidade e, ao mesmo tempo, aproveita as novas possibilidades que se abriam no horizonte nas áreas das ciências e filosofia. Nas teorias de Freud, por exemplo, descobre-se que a mente tem uma estrutura básica e fundamental e que a experiência subjetiva é baseada na relação entre as partes da mente, assim, o mundo é percebido por reações básicas e a realidade subjetiva é baseada na representação de instintos e dessas reações. Em textos de literatura como em Proust ou em Joyce, poderemos notar a importância dessa revelação para o desenvolvimento das tramas. Porque, até então, a realidade externa era absoluta e era quem poderia impressionar o indivíduo como uma tabula rasa, o que daria consistência ao Realismo. Somado a isso, havia ainda os desenvolvimentos tecnológicos (cinema, telefone, meios de transporte...) que incentivavam as artes e começava a aparecer uma arquitetura mais simples e barata, na qual a redação literária moderna vai se inspirar, se tornando mais curta, clara e fácil de ler.

No conto Os Mortos, em Dublinenses de Joyce, sentimos essas mudanças começando a florescer e desabrochando, finalmente, na obra Ulisses e, mais tarde, na inusitada Finnegans Wake. Mesmo não possuindo tantas inovações como nas outras duas, os Dublinenses teve sérios problemas para ser lançada, a ponto de ter tido sua primeira edição inteiramente comprada por um desconhecido e queimada, restando apenas um volume para James Joyce. A obra foi recebida com choque por causa da extrema realidade com que pintou suas personagens, pois, como Beckett explica, “his writing is not about something, it is that something itself.”. Encontramos no livro uma Dublin fragmentada que aprisiona as almas, onde pelas ruas labirínticas personagens – retratadas como reais esboços de figuras conhecidas - passeiam e agem contrariando a moral vitoriana. Utilizando determinados momentos, por nós muitas vezes considerados banais[2], como uma festa, suas personagens acabam ganhando consciência da sua própria existência – até, às vezes tarde demais, como no conto Os Mortos, em que a personagem de Gabriel descobre do amado-morto da esposa e a sua incapacidade para agir (e como agir diante de um morto? Como competir com uma memória?). O passado recuperado serve como um bloqueio ao presente, mostrando um sentimento de que suas personagens estariam diante de uma vida que não conseguem viver. Nós leitores ficamos perplexos e insatisfeitos ao chegarmos ao seu final com a paralisia que toma a personagem principal que deseja sair do lugar onde se degrada, mas que à medida que “a hora avança sobre o gnômon (predecessor do relógio de sol), a paralisia faz mais vítimas, e as saídas se fecham” sobre todos os vivos e todos os mortos.

A mudança no campo cultural foi um jeito de seguir a trajetória de pensamento. Já que a realidade estava em questão e sofrendo mudanças, a arte também deveria mudar. O que acaba quebrando com os princípios burgueses vitorianos ao apresentar uma visão mais pessimista. A pedra fundamental do Modernismo era dar fim às restrições do Realismo e introduzir novos conceitos estéticos, dessa forma, destituindo a novela realista do palanque literário, com mudanças como: a quebra da narrativa linear (fragmentação e não-cronológico), a frustração nas expectativas convencionais em relação à unidade e coerência da trama e personagem - o que acaba se tornando uma causa e efeito -, o uso da ironia e da ambigüidade sobre questões morais e filosóficas, a adoção de um tom de brincadeiras consigo mesmo para atingir a “inocência da racionalidade burguesa”, a oposição entre o processo de consciência ao discurso objetivo e racional. Isso tudo nos conduz a noção de um Modernismo como uma espécie de abandono do mundo social em favor do interesse próprio – joyciniano – na linguagem e no seu processo, investigando a forma. O que também pode ser visto como uma nova forma do homem se ver, sentir e interpretar a sua existência.

Considerado um escritor tão influente quanto Franz Kafka ou Marcel Proust, James Joyce acabou se tornando o percussor de uma inovadora e radical estética que leva o leitor numa viagem mental pelas profundidades do homem. Em Ulisses presenciamos o fluxo de consciência (ou monólogo interior que pode parecer fragmentário e incoerente, o que dá uma sensação de complexidade), pois não há mundo nem vida além da consciência. Idéia surgida a partir da psicologia de William James (irmão do escritor Henry James), em Princípios de psicologia, de 1890, que mostra que a realidade não era um dado objetivo, mas algo percebido subjetivamente por nossa consciência e que, dessa forma, difunde o conceito de corrente de consciência, revelando a existência de recordações, pensamentos e sentimentos fora da consciência primária. Há também a psicanálise de Freud que vai influenciar a construção estilística de Joyce e de outros autores modernos, pois fez emergir do subsolo as estruturas ocultas do psiquismo humano, impulsionando a literatura nas profundidades do eu.

Notamos, com Joyce, que o Modernismo é um paradoxo em si: quer construir em cima da destruição, seja ela de sujeito, espaço ou tempo. Isto é, existe a ordem do tornar novo, uma espécie de dever vanguardista. Inclusive se a palavra vanguarda vem de avant-garde (o que marcha na frente), significa que o artista deve ir a frente de sua época e transformá-la, afirmando, assim, ligações com o presente e com o futuro, ir além dos limites da imaginação. O vanguardista acaba se tornando a imagem da modernidade, ao se criar como uma espécie de revoltado que despreza a burguesia e seus valores tradicionais que criariam uma arte tranqüilizadora e, ao mesmo tempo, ser compromissado com essa época. É uma visão ambígua que aparecerá também na criação de um sujeito moderno na literatura. Há, então, a destruição das velhas formas para poder reconstruir. Como disse Zaratustra de Nietzsche, “todo aquele que quiser ser criativo no bem e no mal deverá antes ser um aniquilador e destruir valores.”, (BRADBURY, p.19). Este mesmo afirmou que “o homem moderno é filho de época fragmentada, pluralista, doente e estranha”, e, por isso, há a necessidade de construir uma arte baseada nessa nova percepção. Quem sabe com esses fragmentos possamos montar um quebra-cabeças que revele o centro do labirinto? – não, talvez esse pensamento seja demasiadamente romântico.

 

 

SUJEITO, DEMASIADO SUJEITO:

 

Percorremos o labirinto para encararmos nossos medos, lutar contra nossos duplos em forma de minotauros e, por fim, conquistarmos a nós mesmos, o auto-conhecimento, quiçá a felicidade. Porém esse sujeito que percorre os multiversos do labirinto está sujeito a muitas coisas que complicam a sua existência, o seu percurso no labirinto. E são esses fragmentos, esse pessimismo, que a literatura procura mostrar nas suas personagens cheias de visões interiores e epifanias existencialistas. Essa idéia de mundo interior, por incrível que pareça, não é invenção do modernismo, apesar de sua melhor caracterização ter acontecido nesse período. Na verdade, surge nas grandes obras do século XIX, porém, ao invés de retratar os tumultos de consciência, impressões e percepções inconscientes, pinta as crises internas em relação ao religioso e ao moral (questão do pecado X perdão).

No mundo do modernismo isso não é mais possível. "A moral não tem importância e os valores morais não têm qualquer validade, só são úteis ou inúteis consoante a situação” e "Deus está morto: não existe qualquer instância superior, eterna. O Homem depende apenas de si mesmo", Nietzsche bordou na História. A verdade pode ser duvidada, pois não é eterna nem objetiva, tornando-se, como James e Freud mostram, subjetivas. O sujeito acaba se tornando, nesse mundo transformado, um sem pátria, um exilado, um estrangeiro. Um homem que vive numa “Errorland” (nome dado por Joyce a sua pátria) sem um objetivo, sem progresso, carregando sete faces. Os próprios autores que vão mostrar esse deslocamento do sujeito no mundo foram sujeitados a processos de expatriamento (obrigatório ou não, sendo viajantes buscando uma experimentação moderna na vida e na obra). Dostoievski foi mandado para a prisão na Sibéria. Joyce e Beckett abandonaram a Irlanda. Proust não mudou de espaço, mas mudou de tempo, seguindo o da memória para poder entender-se no espaço físico que o fazia se sentir como um estrangeiro. Kafka e Borges se refugiaram na literatura para lá encontrarem sua verdadeira pátria, pois “o mundo, desgraçadamente, é real; eu, desgraçadamente, sou Borges.” (SABATO, p.79).

A forma modernista é usada para exprimir a desordem fragmentada da natureza, a agressão do sujeito e a deformação, o desespero e a derrota. Somado a isso, os processos de pensamento descobertos (tão bem representados por Proust), ajudam a criar uma desvalorização do enredo, acompanhada de um aprofundamento da analise psicológica. A narrativa se dissolve numa espécie de reflexão filosófica e metafísica e ganham contornos irreais. O ponto de vista se torna individual e baseado em experiências particulares. São usadas várias vozes, e desaparece o narrador onisciente (principalmente como o porta-voz do autor). Esse perspectivismo se torna importante dentro da literatura modernista, pois muda a representação de uma realidade através de uma visão psicológica. Contar uma história passa a ser desfigurado como as personagens de Dostoievski (quem se lembra a cor dos olhos, ou dos cabelos, ou qualquer outro aspecto que não seja psicológico?). O romance psicológico moderno condenou o retrato da personagem, dissolvendo-o, procurando estudar o elemento psicológico em si. Já em Dostoievski se verifica certa desvalorização segundo os moldes tradicionais: não ficam rostos ou gestos, só raivas, dúvidas e ideais. “E assim acabamos por ver que as personagens de Dostoievski nem sempre nos aparecem fora do comum devido a qualquer anormalidade psíquica, mas muitas vezes só porque ele as forçou a percorrer um caminho em que não imperam as leis da necessidade, sem o que muitos deles apareceriam da nossa própria estatura.” (MONTEIRO, p.98). Personagens em Kafka e em Joyce também não são nomeados nem fisicamente amparados. Somos nós sem mascaras, revelando o humano em casos extremos, chegando ao absurdo.

“Sou um homem doente... Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. Aliás, não entendo níquel da minha doença e não sei, ao certo, do que estou sofrendo. Não me trato e nunca me tratei, embora respeite a medicina e os médicos. Ademais, sou supersticioso ao extremo; bem, ao menos o bastante para respeitar a medicina. (Sou suficientemente instruído para não ter nenhuma superstição, mas sou supersticioso). Não, se não quero me tratar, é apenas de raiva.” (DOSTOIEVSKI, p.15)

 

O romance modernista consegue, então, romper com herança naturalista e realística e apontar para um novo caminho a seguir: a exploração do labiríntico espaço interior da alma humana.

Penetrar na consciência humana, isso é o que promove tão bem Joyce. Contudo, antes dele e depois dele existiram outros dois autores que procuraram trabalhar com esse estilo de discurso e mostrar como era o homem do seu tempo. Um homem que questiona a realidade ao experimentá-la, que busca por um terreno de conhecimento num mundo sem Deus, que critica os valores tradicionais culturais, a perda de sentido e como essa perda pode ser explorada. Alienação se torna um grande tema, misturada ao sentimento de cinismo diante de um universo sem valores. Homem da multidão aparece. É um homem sem perspectiva, desprendido de tudo e capaz de qualquer coisa por causa disso, até de encontrar o prazer num bofetão (DOSTOIEVSKI, p.20) e não se respeitar em meio a sua tagarelice e mágoa (Idem, p.28).

Dostoievski utiliza muito isso através de personagens niilistas que devem criar seus próprios valores (não há esse tipo de ambição em Beckett – com personagens alienadas, para quem nada importa, e que possuem uma visão que não é pessimista). E que possuem uma revolta contra o mundo e contra si (“o homem é estúpido, de uma estupidez fenomenal”, p.38), pois se tornam vitimas de existência do que agentes. No período pós-guerra os romances de Kafka e Dostoievski ganharam relevância ao exprimir essas angustias interiores de um homem solitário e infeliz, o que condizia muito com a época de falta de esperança que se seguiu aos bombardeios.

Há uma espécie de anarquia que se oculta nos subsolos da civilização aparecem nas obras de Dostoievski, principalmente, em Memórias do Subsolo. Nesta obra há uma sondagem dos grandes mistérios da existência: investigar regiões da alma, sobretudo os mais sombrios, próximos a loucura. “O segredo da existência humana consiste não somente em viver, mas ainda em encontrar um motivo de viver.” (Dostoievski[3]), e para isso era preciso ir a fundo, escavar a consciência humana e não ter medo do que lá fosse encontrar – o homem do subsolo. O autor russo queria saber quais esses motivos  de vida para esse ser criado à imagem de pessoas que existiam em sua época (como ressalta numa nota no início do livro: “Tanto o autor como o texto destas memórias são, naturalmente, imaginários. Todavia, pessoas como o seu autor não só podem, mas devem ate existir em nossa sociedade, desde que consideremos as circunstancias em que, de um modo geral, ela se formou.”).

Mas por que um homem enterrado no subterrâneo? Porque é lá que se pode encontrar as melhores condições para realizar-se um labirinto, porque é símbolo da passagem ao mundo inferior, o caminho das sombras, habitado pelo que está oculto, recalcado. Se a realidade tratada pelo Realismo não pode dar as respostas para essa pergunta, quem sabe possamos encontrá-las no oposto, nos subterrâneos dessa realidade que existe apenas na mente do homem.

Tanto quanto o labirinto, o subterrâneo é uma construção artificial, que abre o caminho no impenetrável e explora o proibido, o inconsciente. Nesse ambiente, em Dostoievski, vivem homens construídos por algum tipo de discurso e de ideal, contudo, o anti-heroi é fracassado, com grandes ideais mas sendo prova do fracasso deles.

“Não consegui chegar a nada, nem mesmo a tornar-me mau: nem bom nem canalha nem honrado nem herói nem inseto. Agora, vou vivendo os meus dias em meu canto, incitando-me a mim mesmo com o consolo raivoso – que para nada serve – de que um homem inteligente não pode, a sério, tornar-se algo, e de que somente os imbecis conseguem.” (DOSTOIEVSKI, p.17)

 

Há ambigüidade no discurso, criando no discurso o homem ideal de seu tempo e sendo todo ruim. Tem uma visão de si construída, mas age diferente. Realidade é percebida por mente distorcida, como em Proust. Nada é mais garantido, nem o narrador, que pode mentir. E o homem do subsolo é negativo, um filósofo do ataque, que pelo seu fluxo de fala nos carrega pelos labirintos escondidos no subsolo da consciência humana.

“E, aliás, quereis saber uma coisa? Estou certo de que a nossa gente de subsolo deve ser mantida à rédea curta. Uma pessoa assim é capaz de ficar sentada em silêncio durante quarenta anos, mas, quando abre uma passagem e sai para a luz, fica falando, falando, falando... O fim dos fins, meus senhores: o melhor é não fazer nada! O melhor é a inércia consciente! Pois bem, viva ao subsolo! Embora eu tenha dito realmente que invejo o homem normal até a derradeira gota da minha bílis, não quero ser ele, nas condições em que o vejo (embora não cesse de invejá-lo. Não, não, em todo caso, o subsolo é mais vantajoso!) Ali, pelo menos, se pode.... Eh! Mas estou mentindo agora também (...) o melhor não é o subsolo, mas algo diverso, absolutamente diverso pelo qual anseio, mas que de modo nenhum hei de encontrar! Ao diabo o subsolo!” (DOSTOIEVSKI, p.50-51)

 

Esse formato de monólogo também é utilizado por Beckett para criar uma criatura muito similar a de Dostoievski.

“Associo, com ou sem razão, o meu casamento à morte do meu pai, em outros tempos. Talvez existam outras ligações, em outros planos, entre esses dois acontecimentos, é possível. Já me é difícil dizer o que julgo saber. Visitei, não faz muito tempo, o túmulo do meu pai, isso eu sei, e anotei a data de sua morte, de sua morte apenas, pois a do nascimento me era indiferente, naquele dia. Saí de manhã e voltei à noite, tendo mastigado alguma coisa no cemitério.” (BECKETT, p.2)

 

Ele forma um labirinto na sua linguagem que parece não findar de divagações e desorientações que nos fazem perder a cada curva, a cada página. Em Primeiro amor, Beckett constrói um personagem sem memória, que não acredita em Deus, que não é confiável e vive na solidão, desabrigado do mundo (num banco perto de um canal), e ambíguo em relação ao amor (diz amar mas não parece amar, maltratando a amada). Um anti-heroi que expia o pecado do nascimento, já que a vida é sinônimo de sofrimento, é andar por um labirinto sem rumo, é o eterno-retorno expresso no fim do livro com o nascimento de seu filho. Ele não sentia nem pensava em nada, preso somente as suas necessidades, preso a condição de humano, sem se posicionar diante do mundo. O que irritava seus parentes que o expulsam de casa após a morte do pai e nós leitores. Um minimalismo existencial que aparece também na forma escrita – que parece estar escrevendo a contragosto.

“Aliás, no dia seguinte abandonei o banco, menos por causa dela devo confessar, do que por causa do banco, cuja situação não correspondia mais às minhas necessidades, ainda que modestas, pois estava começando a esfriar, e depois por outras razões de que seria inútil falar para imbecis como vocês (...)” (BECKETT, p.8)

 

Vemos que é como se fizesse uma  dissolução total do “esquema balzaquiano da personagem romanesca”. Segundo Harold Bloom, por causa disso podemos encontrar em Beckett uma afinidade com Kafka, grande gênio da negativa, pois as personagens de ambos são míticas, parabólicas e passivas diante das situações. Contudo, Beckett se mostra herdeiro de fato de Joyce e Proust por causa dos fluxos de consciência que envolvem e paralisam suas personagens.

 

 

ESPAÇOS DE CONTORNOS LABIRÍNTICOS:

 

Para caber um sujeito tão sujeito ao mundo – ou a sua visão de mundo – é preciso de um espaço próprio, de dimensões labirínticas, por onde ele possa se perder para depois se encontrar – nas melhores das hipóteses. Notamos assim, uma centralização do sujeito e a inovação da tradição. Mas para expressar essa nova visão e formatação do sujeito, é preciso de um novo espaço não só na narrativa, mas na forma de narrar. Na estética moderna, então, podemos dizer que os grandes são: Joyce, Proust, Beckett e Kafka.

Como vimos acima, há uma reestruturação da experiência da realidade na literatura: arte sempre tenta imitar ou representar a realidade e os modernistas buscam quebrar com a seqüência e desenvolvimento da apresentação causa-efeito da realidade na novela realista, através da apresentação da experiência como alusiva, descontínua, fragmentada. A língua não é mais transparente que é usada para ver além da realidade de forma correta: a linguagem também é vista como complexa e múltipla. Existe uma necessidade de experimentação da forma para apresentar a experiência de vida de forma diferente e nova, às vezes para dar um senso de Arte à arte.

Quando falamos em espaço no Modernismo, também pensamos na metrópole, nas experiências fornecidas por este meio, que pode tanto ser de realização pessoal (educacional, amorosa, econômica) ou de desconforto, mal-estar, desespero existencial. Cidades grandes são labirintos – vivos, mutáveis, efêmeros - como a Dublin de Joyce, ou pelo menos, os homens modernos assim as transformam vivendo nelas, tirando delas as suas sensações mais baudelairianas ou proustianas. Em Kafka e Borges esse transtorno é transformado de forma diferente. A realidade, o espaço, acaba se tornando incompreensível, fantasioso, irreal para dar mais ênfase aos sentimentos de exílio e estranhamento. O mundo exterior muda, se transforma, esvaziado de realidade para, justamente, fazer sentir a realidade.

De acordo com o dicionário Houaiss, o termo kafkiano significa atmosfera de pesadelo, de absurdo, contexto burocrático que escapa a qualquer lógica ou racionalidade. É nesse ambiente que as personagens modernas procuram fazer o melhor para mudar ou entender a sua condição. Existe certa passividade, mas não de forma abrupta em Kafka, e a ambivalência ainda persiste (como o caso da existência de um amigo que não sabemos se existe ou não em O Veredito). Muitas vezes essas personagens agem atravessando corredores e portas, valendo-se de porteiros, mas jamais alcançam seus objetivos, sempre trazidos para o ponto de partida (eterno-retorno), e tendo um contato com o real de forma indireta (como no conto Diante da Lei). Assim, afasta o romance do modelo tradicional balzaquiano, transformando-o num enigma, num romance aberto de perspectivas e limites incertos, como um labirinto, cheio de personagens estranhas e anormais[4]. Interessante ver que neste mundo incoerente – metáfora para o nosso mundo moderno – usa uma  linguagem coerente e nítida.

Se Kafka foi o grande precursor de Borges[5], este argentino também se fará valer pelos espaços labirínticos em suas obras. Para Borges o mundo é ilusão, uma especulação, um labirinto, um espelho que reflete outros espelhos, é literatura. Ele cria brincadeiras metalingüísticas para que nos percamos nos seus labirintos fictícios ao pensar o que é o homem. Porém, diferente de Dostoievski, não procura a verdade, discute pelo simples prazer de discutir.

 

 

EM BUSCA DE MAIS TEMPO:

 

Dentro da concepção baudelairiana de modernidade (isto é, transitoriedade, fugacidade), o homem cria o pensamento de impossibilidade antes de poder sonhar, segundo Fernando Pessoa. E isso vemos na questão do sujeito nas obras modernistas, em que ele é ambíguo (dualidade da arte é expressão da dualidade do homem, de acordo com Baudelaire) e está sujeito a si mesmo, dizendo umas coisas e fazendo outras como se não soubesse o que faz, ou não tivesse vontade de saber. Essa posição pessimista não existia na Idade Média nem na Renascença, quando os sonhos eram postos em prática. Em comparação com aquela época, a vida moderna é mais rápida em alguns aspectos, mas mais lenta quando pensamos que aos 40 anos não nos considerarmos velhos. Ou seja, a nossa percepção de tempo mudou. Ele se estendeu com as descobertas tecnológicas e científicas, porém, isso permitiu que o sujeito tivesse mais tempo para pensar dentro desse espaço labiríntico o qual percorre - seja interna ou externamente. As cidades também mudaram a percepção de mundo e de tempo, que vai deixar de ser cronológico, continuo para se tornar transitório. - Joyce e Proust falam de um presente, passado e futuro ao mesmo tempo dentro da cabeça da personagem e colocado, muitas vezes, misturados no texto.

Misturando a subjetividade da verdade - em que nem o narrador é mais símbolo de verdade -, à velocidade da vida moderna; colocando uma pitada de inovações tecnológicas e científicas que favorecem a visão da multiplicidade de fatos diferentes ocorridos num pequeno espaço de tempo; e adicionando as idéias de Bérgson sobre a atuação da memória e do tempo interior  (um tempo psicológico e não histórico, capaz de justapor situações cronológicas fora de ordem) na forma como aprendemos a realidade; temos como resultado Proust e Em Busca do Tempo Perdido.

Em Bérgson temos a “memória voluntária” (consciente) e a “memória espontânea” (inconsciente), esta é a “memória por excelência”, que faz registro fiel dos acontecimentos e os evoca de forma involuntária, pois quem deseja recuperar o passado em forma de imagens, precisa abstrair-se a ação presente e dar valor ao inútil, precisa querer sonhar. Por isso, é preciso uma madalena para mudar a percepção de  vida de muitos Marcéis.

As primeiras lembranças do livro partem-se em torno do beijo de boa noite que a mãe dava e a confusão que isso provocava em relação ao pai. Diretamente está ligado o dia que não recebeu o beijo por causa da visita do Sr.Swann e o desencadeamento da história deste e imagens das visitas dele à casa de Combray até chegar as próprias imagens do narrador que surgem de uma memória espontânea, quando desliga-se do presente num momento quase epifânico:

 “ao drama do meu deitar; como se Combray consistisse apenas em dois andares ligados por uma estreita escada, e como se fosse sempre sete horas da noite. Na verdade, poderia responder, a quem me perguntasse, que Combray compreendia outras coisas mais e existia em outras horas. Mas como o que eu então recordasse me seria fornecido unicamente pela memória voluntária, a memória da inteligência, e como as informações que ela nos dá sobre o passado não conservam nada deste, nunca me teria lembrado de pensar no restante de Combray. Na verdade, tudo isso estava morto para mim. (...) trabalho perdido procurar evocá-lo (o passado), todos os esforços de nossa inteligência permanecem inúteis. (...) Em breve, maquinalmente, acabrunhado com aquele triste dia e a perspectiva de mais um dia tão sombrio como o primeiro, levei aos lábios uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço de madalena. Mas no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas do bolo, tocou meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem sua noção de causa. Esse prazer me tornara indiferente às vicissitudes da vida, inofensivos seus desastres, ilusória sua brevidade, tal como o faz o amor, enchendo-me de uma preciosa essência: ou, antes, essa essência não estava em mim, era eu mesmo. Cessava de me sentir medíocre, contingente, mortal. (...) É claro que a verdade que procuro não está nela (na madalena embebida de chá), mas em mim. A bebida a despertou, mas não a conhece, e só o que pode fazer é repetir indefinidamente, cada vez com menos força, esse mesmo testemunho (...) Deponho a taça e volto-me para meu espírito. É a ele que compete achar a verdade (...) ele, o explorador, é ao mesmo tempo o país obscuro a explorar (...) Explorar? Não apenas explorar: criar. Está diante de qualquer coisa que ainda não existe e a que só ele pode dar realidade e fazem entrar em sua luz.(...) Por certo, o que assim palpita no fundo de mim deve ser a imagem, a recordação visual que, ligada a esse sabor, tenta seguí-lo até chegar em mim. Mas debate-se demasiado longe, demasiado confusamente; mal e mal percebo o reflexo neutro em que se confunde o ininteligível turbilhão das cores agitadas, mas não posso distinguir a forma (...) Chegará até a superfície de minha clara consciência essa recordação (...) ? Não sei. Agora não sinto mais nada, parou (...) Dez vezes tenho de recomeçar, inclinar-me em sua busca. E, de cada vez, a covardia que nos afasta de todo trabalho difícil, de toda obra importante, aconselhou-me a deixar daquilo, a tomar meu chá pensando simplesmente em meus cuidados de hoje, em meus desejos de amanhã, que se deixam ruminar sem esforço. E de súbito a lembrança me apareceu. Aquele gosto era o do pedaço de madalena que aos domingo de manhã em Combray (pois nos domingos eu não saía antes da hora da missa) minha tia Léonie me oferecia, depois de o ter mergulhado em seu chá da Índia ou de tília (...) flores, casas, personagens consistentes e reconhecíveis, assim agora todas as flores de nosso jardim e as do parque do Sr.Swann, e as ninféias do Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas pequenas moradias e a igreja e toda a Combray e seus arredores, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, de minha taça de chá. ” (PROUST, p.49-51)

 

Essa segunda memória é muito importante para o livro porque aparece a necessidade de voltar ao passado por causa da angústia que sente frente ao presente irreversível, ao transitório, à fugacidade, à morte. É como se não conseguisse se integrar ao mundo, vivesse uma vida mundana, um tempo de agora perdido, então, buscaria na arte recuperar um tempo perdido - porque se foi - em que não tivesse passado por isso - a época da infância – reviver o passado para fugir do presente ingrato e se entender. Fazer com que as memórias, mesmo que efêmeras, lhe tragam o sentimento de ter encontrado a verdadeira experiência da vida, a felicidade plena em meio ao labirinto de memórias. E a única forma de reter esse estado de graça é criando uma obra de arte, que vai recuperar o tempo e revivê-lo, não exatamente como viveu, mas o que vive enquanto escreve.

É bom lembrar que a idéia da  recordação do passado não é privilégio da literatura moderna, mas é nessa época que ela ganha força por causa das novas questões científicas que lhe dá um aspecto novo, colocando-a como instrumento de jogo da narrativa. E também não é privilégio de Proust. O narrador em primeira pessoa que fala de si mesmo como se fosse outra pessoa, construindo “eus” ao longo do romance e criando um tempo subjetivado selecionado pela memória e analisado no presente, fragmentando tempo, espaço e sujeito, é usado por Dostoievski também em Memórias do Subsolo. Em ambos o que é contado não dá para saber se é verdade ou mentira (novas ambigüidades). Ainda mais, essas memórias e lembranças também podem ser falsas, isto é, uma memória construída (e não necessariamente vivida). Bloom ainda compara em Proust e em Dostoievski a capacidade de criar personagens, pois ambos apresentam os personagens sem explicar[6], e acredita de Proust leva mais a fundo a sondagem psicológica do que Dostoievski, graças às descobertas da memória como faculdade que apreende fluxo vital e tempo bergsoniano com duração fora dos limites do relógio ou encadeamento sucessivo de fatos.

 

CONCLUSÃO (SE HÁ ALGUMA):

 

Chegando ao centro do labirinto encontramos um livro. Na capa não há nada.

Pensamos por cada ruela percorrida dentro daquele instrumento de espaço-tempo interno-externo que a literatura se escreve através de leituras sucessivas.

Relembramos, então, que entramos naquele lugar atrás de alguma coisa, como que para nos salvarmos da inércia em que vivemos no “ócio agitado” da vida moderna, contra a morte.

Temos tempos para recuperar, subsolos para escavar, Quixotes para escrever.

Abrimos o livro do centro do labirinto e o que encontramos é Borges:

 “O verdadeiro labirinto é um livro.”

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

BIBLIOGRAFIA:

 

BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna. (na pasta de Filosofia)

BECKETT, Samuel. Primeiro Amor. São Paulo: Cosac Naif, 2004.

BLOOM, Harold. Gênio. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.

BORGES, Jorge Luis. Ficções. São Paulo: Ed.Abril, 1972.

BRADSBURY, Malcom. Introdução: tornar novo. In:  O mundo moderno. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.

CIVITA, Victor. Os imortais da literatura universal. Vol. I e III. São Paulo: ed.Abril, 1972.

DOSTOIEVSKI, Fiodor. Memórias do Subsolo. Rio de Janeiro: editora 34, 2006.

JOYCE, James. Os mortos. In: Dublinenses. Rio de Janeiro: O Globo.

KAFKA, Franz. O Veredito. (na pasta de Cânone)

MONTEIRO, Adolfo Casais. O romance. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1964.

PESSOA, Fernando. Obra em Prosa. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar, 2004.

PEYRONIE, André. Labirinto. In: Dicionário de Mitos Literários. Org. Pierre Brunel. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 2000.

PROUST, Marcel. No caminho de Swann. In: Em busca do tempo perdido. (na pasta de Cânone)

SABATO, Ernesto. O escritor e seus fantasmas. São Paulo: Cia. das Letras, 2003.

 

SITES:

http://tijuana-artes.blogspot.com/2005/03/modernismo-y-posmodernismo-m-berman.html

http://www.brocku.ca/english/courses/2F55/modernism.html

http://educaterra.terra.com.br/literatura/modernismo/2004/05/17/001.htm

http://www.digestivocultural.com/ensaios/ensaio.asp?codigo=24

http://pt.wikipedia.org/wiki/Modernismo

http://acd.ufrj.br/pacc/modernismo.htm

http://www3.iath.virginia.edu/elab/hfl0255.html

http://www.litencyc.com/php/stopics.php?rec=true&UID=1219

http://www.filhosdeathena.com/index.php?option=com_content&task=view&id=83&Itemid=41

 



[1] Modernidade não no sentido histórico, isto é, a Era Moderna depois da Idade Média, mas sim, o período que começa a se desenvolver no fim do século XIX.

 

[2] O romance moderno marcha para a complicação psicológica das personagens, o que bate de frente com a simplificação de fatos na narrativa e o uso de um vocabulário mais simplificado em alguns casos. Mais um senso de ambigüidade dentro do Modernismo.

 

[3] De acordo com Bradbury, não só ser escritor é importante para a construção do Modernismo, mas como ser um bom leitor. Se analisarmos a escrita como uma reconstrução das leituras anteriores feitas por seu escritor, podemos dizer que de Byron, Dostoievski pega uma angustia pelos problemas da existência e a paixão da liberdade; de Victor Hugo vem a preocupação social; de Shakespeare, os sofrimentos espelham falhas humanas e não seres divinos; do Evangelho – volume que levou para o cárcere - os sofrimentos são o preço da redenção; e de Cervantes, o bom homem não se ajusta ao mundo. 

 

[4] “Kafka foi o gênio do isolamento. Ensinou-nos que nada temos em comum com nós mesmos, muito menos com terceiros.” (BLOOM, p.226).

 

[5]  “Um escritor como Kafka, há sempre uma única e obsessiva metafísica. E porque em Borges abundam as possibilidades, resistimos a crer em sua crença: suas aventuras se distinguem da única e terrível aventura de Kafka (...) Em Borges, há uma única fidelidade e uma única coerência: a estilística.” (SABATO, p.69).

[6] “Alguém poderia objetar que Proust pouco faz alem de explicar seus personagens, mas tais explicações são experimentais, e não demonstrativas.” (BLOOM, p.)

 

Letra X Imagem ou Letra = Imagem ?

Frederic Jameson explica que vivemos na época da “superabundância de imagens” ou na  “coleção de imagens, enorme simulacro fotográfico”, na qual a imagem teria se transformado na principal forma de diluir mensagens. Calvino vê de forma negativa essa “inflação de imagens”. Esse excesso foi combatido no Minimalismo dos anos 60, que reduzia ao máximo os elementos da própria arte, criando uma arte mais pura e livre da mistura com outras artes. No entanto, na contemporaneidade do século XXI, estamos envolvidos por manifestações híbridas e múltiplas que põem em questão os suportes tradicionais da arte, mostrando a impossibilidade da palavra tentar descrever aquilo que as imagens e sons podem mostrar. Dessa forma, o texto se anexa as outras artes, fazendo ver e a imagem nos dando a entender. Ao mesmo tempo, vivemos o paradoxo, pois estamos na era do vídeo, da reprodução eletrônica, e temos medo de que a imagem ameace a cultura do livro. Sendo assim, a literatura se encontra no conflito existente entre letra e imagem, procurando nesta tensão um reencontro com sua realidade própria sem, necessariamente, ser um encontro mimético e representativo. Contudo, essa relação desequilibrada, de diferença entre imagem e letra só apareceu mais fortemente na arte moderna. Antes, na época de Horácio, poesia e pintura eram como artes irmãs.

 

A idéia de artes irmãs, isto é, poesia como pintura, para compreender e estudar melhor uma e a outra, apareceu pela primeira vez em Simonides de Cós e depois em Plutarco, que escreveria em De Gloria Atheniensium que “a pintura é uma poesia silenciosa; a poesia é uma pintura que fala”, antes de chegar nas mãos de Horácio. Em Ut Pictura Poesis, Horário defende a irmandade entre poesia (leia-se textos imaginativos) e pintura, pois expressam as mesmas coisas, apesar de ser por meios diferentes. Isso pode ser visto quando, por volta dos séculos VIII e VI a.C. os gregos começaram a usar uma escrita alfabética (antes ela era silábica) e cantigas, tragédias, rapsodos, etc. começaram a aparecer escritos. Inclusive, no século VI a.C., Psístrato e seu filho Hiparco juntaram vários episódios recitados por aedos e transformaram os escritos no que hoje conhecemos como a Ilíada e a Odisséia. Dessa forma, a “poesia” começou a aparecer como a pintura, uma arte e as imagens, que apareciam na oralidade funcionando como um processo mnemotécnico para se lembrar dos versos (por isso, a repetição excessiva de imagens, como “a aurora de dedos rosados”) vão poder, com a escrita, se libertar desse aprisionamento mental para darem asas a liberdade de criação.

 

Essa comparação interartística para Wellek e Warren, no livro Theory of Literature, de 1956, não contribui em praticamente nada para a compreensão da literatura. Da mesma forma, pensavam outros estudiosos anteriores a eles. Como Leonardo Da Vinci, que achava que as imagens poéticas se comparadas com as imagens da pintura eram “débeis e perecíveis, meros signos”. No tratado Della Pintura, de 1435, Alberti define princípios teóricos sobre a especificidade da pintura, rompendo, assim, com a simetria das artes irmãs. Em 1766, Gotthold Efraim Lessing, no início de Laocoonte, começa observando que Simonides era um homem de “fine feeling”, contudo, não era crítico ou filósofo. Lessing separa as artes da destacando suas características da seguinte forma: a pintura é sincrônica, um fenômeno visual, pertencente ao espaço, estática e não-progressiva e é imediatamente entendida e apreciada, enquanto a poesia é diacrônica, um fenômeno auditivo, pertencente ao tempo, dinâmica e progressiva. Por fim, recomenda que a poesia e a pintura não sejam confundidas e que são melhor praticadas e apreciadas como duas artes vizinhas. Assim, as artes plásticas não devem se arriscar com a narrativa, isto é, deve se abster das idéias para não criar formas alegóricas grotescas, podendo representar ações por alusões corporais. E a literatura, a quem as idéias pertencem, só pode descrever corpos evocando-os através das ações das personagens.

 

No século XIX, com o aparecimento do Impressionismo e da pintura abstrata, elementos literários serão por vez eliminados da pintura, ou seja, a imagem ganhou independência das explicações textuais já que era valorizado como força expressiva a representação direta e imediata da descrição visual. Com essa ruptura com a linguagem, pintores modernistas se concentram no desenvolvimento puramente visual (formas, cores, superfícies), levando ao ápice “pintura sem objeto”. No famoso quadro de Magritte do cachimbo encontramos essa dissociação entre imagem e linguagem, definindo a Alta Modernidade. Esse processo de separação é apresentado e analisado, mais tarde, por Foucault, no livro Isto não é um cachimbo. Foucault, explica que dois princípios reinaram sobre a pintura ocidental, do século XV ao XX. O primeiro: a separação entre representação plástica e referência lingüística, de modo que os dois sistemas não podem se cruzar ou se fundir, e um acaba subordinado ao outro (ou texto regrado por imagem - quadros com livros, inscrições... - ou imagem regrada por texto - livros com desenhos), dessa forma, o signo verbal e a representação visual não são jamais dados de uma vez, havendo uma hierarquia. O segundo princípio coloca equivalência entre fato da semelhança e afirmação do laço representativo. Estes fatos da semelhança e da afirmação reintroduziram o discurso numa pintura (antes havia tensão entre signos lingüísticos e elementos plásticos). A Modernidade com Kandinski mostrou que se aparece um enunciado é para contestar a identidade manifestada na figura, mostrando que as palavras são da mesma substância que as imagens.

 

Dessa forma, hoje em dia é impossível isolar literatura de uma cultura predominantemente visual (cultura da imagem). A mistura de gêneros e a quebra hierárquica nas artes e na cultura do início da Modernidade não são mais uma transgressão e sim, uma condição para a produção artística. A obra dialoga com a visualidade da imagem, no desenvolvimento do suporte gráfico para a imagem-texto da escrita virtual e na abordagem visual dentro da narrativa. Os avanços da contemporaneidade mostraram que não há mais arte puramente visual nem verbal. E a tensão entre elas pode ser vista como uma interação constitutiva para a representação em si, sendo essas heterogêneas, como os meios de comunicação. “Nenhum signo artístico se apresenta como puramente verbal nem como puramente visual. O texto depende hoje mais do que nunca da sua qualidade visual, e da sua materialidade escrita, do seu meio gráfico, da sua edição ou da sua projeção. No caso dos hipertextos se tornou praticamente impossível distinguir entre o elemento visual e textual do signo, o que cria uma nova dimensão de significados não redutível nem ao sentido literal da linguagem nem a semelhança mimética da imagem.(...) não podemos tratar a imagem como ilustração da palavra nem o texto como explicação da imagem. O conjunto texto-imagem forma um complexo heterogêneo fundamental para a compreensão das condições representativas em geral.” Esse impacto na literatura das novas tecnologias pode registrar mudanças na experiência de mundo (tempo e espaço), e sujeito como condição da identidade social. 

 

Esta aproximação entre literatura e imagem existe por causa do reconhecimento da separação entre artes visuais e literárias, rompendo com proposta de Horacio (que entendia a diferença entre as artes como apenas do modo de expressão material sem afetar o significado essencial da obra – a poesia era uma imagem em palavras e a imagem um poema em traços e cores, dessa forma, as artes podiam ser avaliadas comparativamente.). No Alto Modernismo, o quadro Isto não é um Cachimbo, manifesta derrota dessa semelhança comparativa (o texto não explica mais o que a imagem diz, e a imagem não ilustra mais a palavra/ o texto e a imagem continuam relacionados, não pela semelhança, mas pela “não-relação irreduzível entre aquilo que a imagem diz e aquilo que o texto mostra.”). A contemporaneidade está vinculada a não-relação do texto e da imagem que se infiltram de qualquer forma e que, ao invés de criar uma redundância, criam um outro significado já não explicável só por um meio ou pelo outro, mas sim, pela relação da não-relação dos dois.

 

Podemos notar que o desenvolvimento da escrita está vinculado à imagem desde Grécia antiga e mesmo a Modernidade tentando separá-las, nunca conseguiram por completo. Século VI a C surgiram textos que o contorno externos desenhavam instrumentos de guerra e caça. Na Idade Media, narrativa visual e imagens narrativas eram muito próximas, havendo manuscritos com superposições de escrita e imagem e a troca de seus lugares. Na poesia barroca surgem textos configurados como altares, cruzes, centros, sendo mais do que ornamento tipográfico. Cubistas, futuristas, dadaístas, concretistas trabalharam com essa relação entre letra e imagem. E hoje surgiu, com a linguagem eletrônica alterando nosso relacionamento com o texto, tornando-o móvel e efêmero, formas de intermedialidade na literatura digital conhecida como interficções (termo de Robert Simanowski, Interfictions. Vom Schreiben im Netz, 2002), misturando som, imagem e escrita, criando, como Heidrun Krieger Olinto diria, uma literatura performática.

O fantástico Encarnação de José de Alencar


Ao terminarmos de ler Encarnação, último livro completado por José de Alencar antes de morrer em 1877 - publicado postumamente em 1893 - logo nos deparamos com um sentimento de estranhamento. Não por causa do teor fantástico que nos carrega pela novela – fato raro na literatura brasileira – mas sim, por ser da autoria de José de Alencar, o que gera mais incerteza ainda por parte dos críticos e de nós, leitores, acostumados a romances alencarianos idílicos e cheios de heróis e heroínas capazes de fazerem tudo pelo amor ou pelo que acreditam ser o certo.

De acordo com Todorov, o fantástico representa um tipo de literatura em que na narrativa há um acontecimento que não pode ser explicado de acordo com as leis do nosso mundo. Então, leva-se em conta de que se trata ou de uma ilusão ou de algo que não temos o conhecimento (por exemplo, o diabo. Ele pode ser uma ilusão de uma personagem ou apenas um ser existente, mas que temos pouco contato). Dessa forma o fantástico nos cria o sentimento de incerteza diante do que nos deparamos, uma hesitação diante de algo aparentemente sobrenatural. Depois de passado esse pequeno instante,   encontramo-nos ou com o estranho ou com o maravilhoso. No primeiro caso – e no qual enquadro, a princípio, Encarnação - as leis da realidade explicam o acontecimento inusitado. E no segundo, novas leis são admitidas para se ter uma resposta.

Na literatura brasileira, o mais conhecido livro com tom fantástico é de Álvares de Azevedo, Noites na Taverna. Se compararmos, contudo, a obra literária de Álvares de Azevedo com a de José de Alencar, notamos que colocá-los num mesmo patamar seria algo tão estranho quanto um acontecimento sobrenatural num livro fantástico. Já que um, além de ter sua obra mais concentrada na poesia ultraromântica, parece se enquadrar melhor por causa do teor melancólico, soturno e, às vezes, até diabólico, presentes em suas linhas e que são necessários à narrativa fantástica. Enquanto o outro nos carrega pelas matas virgens de um Brasil recriado, por honradas áreas rurais e pelos costumes dos salões da Corte. Não que seja estranho o uso do fantástico nos romances românticos, pelo contrário. No meio das fronteiras tolerantes do romance se encaixa o fantástico. O romance romântico tornou-se ideal para caracterizar os anseios e sentimento dos leitores que eram, na sua maioria, jovens de ambos os sexos ou profissionais liberais que queriam se encontrar nas páginas dos livros,  além de ser ideal para comportar o desejo de exprimir novos sentimentos, de ser uma atividade intelectual para a construção nacional, descrevendo costumes e abrindo-se para a sensibilidade e para o espiritualismo.

As narrativas fantásticas existem por ser uma forma de tratar assuntos que seriam proibidos ou mal-vistos pela sociedade como: incesto, homossexualismo, poligamia, necrofilia, vícios, psicose, individualismo acentuado, desejo de desacordo com normas, sadismo, desvios sexuais,... assim descrita por Todorov: “a má consciência desse século XIX positivista.”. Estes temas que aparecem em vários pontos da obra de Álvares de Azevedo, mas que não são recorrentes em José de Alencar, já que este possui uma linha de pensamento, explicada mais tarde na introdução de seu livro Sonhos d’Ouro. Neste, escreve que sua pena pende para a criação de uma literatura brasileira, não mais colonizada pela literatura alheia e capaz de lutar contra a invasão de outros costumes. O que não podemos deixar de é que talvez Alencar tenha, exatamente no fim de sua obra literária, com o advento do Realismo em 1875 - escola da qual se considerava parte, apesar das críticas de Joaquim Nabuco -, notado esse tom de crítica universal ao positivismo e dele se feito para escrever uma obra mais madura e psicológica do que as que já havia escrito – como Lucíola e Senhora. Isto é, depois de muito ter analisado a superfície do Brasil e seus costumes, decidiu que já podia se embrenhar nas profundezas do lado psicológico das personagens, pois o público também já estaria preparado para isso.

Antes, no início de sua circulação no Brasil, os romances em si não podiam levantar ante uma sociedade pouco urbanizada os estudos de complicações psicológicas como faziam outros autores daquela época na Europa já acostumada com séculos de literatura. Naquela época escrever era uma missão para o autor, uma forma de mostrar o que estava errado na sociedade e como corrigi-lo. Principalmente para um filho de padre que, apesar do intelecto rico, não tinha muito dinheiro e por causa disso foi, muitas vezes, excluído de rodas sociais e recusado como pretendente. Sendo assim, quando pensamos em José de Alencar, nos vem à cabeça esse instrutor rígido e, como diz Antônio Cândido, um sociólogo, que em Senhora e Lucíola se mostra irritado com a sociedade, cheio de um moralismo romântico que se alonga sobre coisas como casamento por dinheiro e prostituição, mas no fim salva a dignidade dos protagonistas que de redimem.

A trajetória literária de Alencar ainda é cheia de heróis corteses e honrados, paisagens rurais, índios idílicos, vida burguesa com sua moda e regras, enredos de amor – às vezes ingrato entre homem e mulher e centrado no orgulho e ciúmes - e casamento... mas ainda crê nas razões do coração - nota-se pelo prólogo de Cinco Minutos: “o coração é sempre verdadeiro, não diz senão o que sentiu, e o sentimento qualquer que ele seja tem a sua beleza”. Resumindo, a obra alencariana, poderíamos dizer, varia em torno de dois eixos, que ao longo dos romances vão se repetindo e sendo mais aprofundados: complicações sentimentais e idealização heróica. O fantástico entra aqui como uma ferramenta que Alencar precisaria para ajustar as suas críticas à sociedade sem ser prejudicado por censuras como foi com a sua peça Asas de um Anjo – ele foi censurado por ter escrito uma peça com o tema da prostituição como em Dama das Camélias, representada na mesma época e sem retaliações. Alencar explica que isso se deu porque a sociedade brasileira não tinha medo de ver as chegas da cultura alheia, mas quando se tratava da própria, parecia querer evitar, só se interessando pelo que vem de fora.

Interessante notar que Encarnação não foi o primeiro escrito fantástico de Alencar. Quando chegou em São Paulo para o curso de preparação para a faculdade de Direito, trazia na bagagem, como relata em Como e porque sou escritor, um molde de um romance “merencório, cheio de mistérios e pavores; esse, o recebera das novelas que tinha lido. Nele a cena começava nas ruínas de um castelo, amortalhadas pelo braço clarão da lua; ou nalguma capela gótica frouxamente esclarecida pela lâmpada, cuja luz esbatia-se na lousa de uma campa.” Mas ficou muito tempo sem seguir o modelo de Byron, como faziam os colegas de turma, principalmente Álvares de Azevedo, por achar-se já suficientemente melancólico e taciturno.

Não podemos dizer que Encarnação está totalmente destacado dos outros escritos de Alencar. Na verdade, ele apenas utiliza um novo recurso – o gênero fantástico – para bater nas mesmas penas de antes: uma sociedade que pouco se importa com a dor alheia, a divisão do homem (indivíduo versus grupo, gênio versus padrões sociais), o amor como a cura de todos os males e a idealização excessiva do amor familiar – notamos que Amália tem todas as suas vontades feitas pelos pais no início do livro – e da paixão. Alencar utiliza, de forma prática, aquilo que era a idéia principal do romance: arrancar os homens do cotidiano e levá-los para encontrar milagres. No entanto, a forma como isso é apresentado é o que faz a diferença e torna essa uma das obras mais incríveis de Alencar, a ponto da própria crítica querer ignorá-la por sair dos parâmetros comuns do autor.

Tanto em Encarnação quanto nas outras obras, a preocupação com o perfil da mulher, com a psicologia feminina ainda se mantém bastante presente. A heroína ainda é cândida, firmes, inteligente, com espírito crítico e revelando-se o duplo do herói, a confirmação de seus desejos - através da personificação da primeira mulher - tornando-se um ato de abnegação pelo amor, ascendendo ao sublime heróico – a mulher ideal que renuncia a própria identidade de acordo com as normas opressoras da sociedade para ver o marido feliz. O herói ainda é bom, cheio de dever e consciência mais forte que a paixão, ainda é romântico, encarando a imagem da virtude quase desumana, um anjo triste e melancólico afastado do mundo que não o entende e atormentado por mágoas passadas que o impedem de viver o presente, lançando-se, assim, a evasão - em meio a um santuário à ex-esposa. O passado ainda é elemento condutor da sua narrativa e o critério de revelação psicológica, fazendo com que as personagens ainda sejam escravas da vida anterior, o que cria um mistério. E o amor ainda é a forma de mudar – tanto Amália, que deixa de ser mimada e pensar em si mesma como uma criança egoísta - curar e restaurar a sanidade – o amor de Amália é tão forte que a transforma de menina mimada para Julieta e desta para a Amália que tanto queria ser enxergada como mulher por Hermano e o resgata do passado de uma vez por todas. O tema do amor é muito recorrente no fantástico, principalmente o amor maior que a morte, o amor intenso que cria um estranho social como Hermano.

Todorov anuncia que o que interessa ao crítico não é o que a obra tem em comum com o resto da literatura, mas o que tem de específico, então, vejamos não mais os temas ou personagens comuns com as outras obras de Alencar, mas aquilo que a diferencia das outras.

A estudiosa Ruth Brandão alega que Hermano sofre de uma incapacidade de amar, pois durante o próprio casamento ele idealizava Julieta – encantado ainda com a persona da Lucia de Lammermoor – e depois Amália. Hermano, de certa forma, mata Julieta antes dela morrer por causa dessa idealização. Julieta, na verdade, teria sido não apenas uma forma de preencher um vazio decorrente de uma parte negada de si ou desejada no indivíduo e projetada no outro, mas um pretexto para Hermano não amar. E o vazio criado por Julieta só poderia ser preenchido pelo único ser que lhe fosse homogêneo ou mundo desabaria. Nesse caso, a própria Julieta, mas como ela não existia mais, Amália ocupa esse lugar quando se transveste de Julieta. Uma Amália que entra na aventura para acabar com o tédio que é a sua vida, por desejar narcisicamente um amor igual ao que viu entre Hermano e Julieta quando pequena pela janela da casa deles (das Unheimliche, sentimento de estranhamento que norteia toda sua trajetória no romance fantástico) – narcisismo este apenas satisfeito com a identificação com a imagem narcísica, neste caso, Julieta, e a aceitação do próprio suicídio.

A renúncia da heroína por amor não é novidade em Alencar, contudo, a renúncia de Amália parece carregar um teor que beira a loucura, assim como a de Hermano. Ela interioriza a Julieta ideal para fazer Hermano confundi-la até se apaixonar por ela e realizar, assim, um casamento de fato – nota-se que dá a entender que os dois não consumaram o casamento até o penúltimo capítulo, depois do incêndio na casa que purifica a relação dos dois. E eles têm uma filha, o que não aconteceu no casamento com Julieta, que não frutificou, isto é, havia a individualidade, o egoísmo, a idealização, que barreiras que não permitiam o crescimento do relacionamento e que por fim foi aniquilado pelo próprio desequilíbrio proporcionado pelos sentimentos dos dois.

O que soa fundamentalmente fantástico na obra não é a loucura de Hermano, que é a sua paixão na radicalidade, ou sua reclusão num passado morto - sabemos que vivia na inconsciência da morte da amada e que a forma dela estava tão mesclada com a sua, que dizia que havia morrido parte dele com ela, porém, que ainda podia senti-la presente -  mas sim o surgimento das estátuas que não lembram Julieta diretamente, mas captam a sua alma, como diria Hermano. Esse surgimento inusitado e louco representa a recusa do vazio da morte da esposa, uma forma de manter vivo um ideal filosófico muito presente no romantismo – amar unicamente uma pessoa, até depois da morte. Morte esta, que pode ser vista como um ato de punição. O amor à morte é uma punição ao desejo sexual excessivo, diriam os teóricos do fantástico, a sensualidade desenfreada cria sentimento de culpa. Vale lembrar que Julieta morreu quando grávida. Talvez por isso Hermano tenha tido medo de consumar seu casamento com Amália.

Junto com Amália – ou com qualquer outra personagem numa história fantástica – vamos pisando em ovos até descobrir o que realmente está por detrás dos fatos estranhos que rondam a vida de Hermano. Acontecimentos estes que separados não parecem trazer nenhum mistério que contradiga uma lei natural, mas que juntos se tornam incomuns. Questões estas que muitas vezes tem um caráter ambíguo, que não são suscetíveis de acontecer e acabam, por causa disso, gerando medo e perplexidade por parte do leitor. Essa hesitação situada entre o real e o imaginário muitas vezes trabalha com temas como a loucura, que é a ruptura do limite entre espírito e matéria, a multiplicação da personalidade. Para o louco não há separação entre o eu e o mundo, criando uma fusão cósmica, vivendo num presente eterno, sem passado ou futuro. É um desvio, uma negação do universo. É comum nas novelas fantásticas o aparecimento de tendências neuróticas desagradáveis manifestadas. Segundo Penzoldt, “para muitos autores, o sobrenatural não era senão um pretexto para descrever coisas que não teriam nunca ousado mencionar em termos realistas.”, como a questão sexual acima analisada.

A ambigüidade, que é chave-mestra para a narrativa fantástica, está presente em diversas partes da obra. Como no aparente interesse de Amália pelo Dr.Henrique Teixeira, pelas mulheres que aparecem na casa de Hermano e que na verdade são estátuas, na conversa com Amália de como arrumar uma forma dos dois se separarem, ambigüidade esta que aparece até na nomeação de Hermano (às vezes conhecido como Carlos, outras como Hermano e outras tantas como H. de Aguiar). É com um truque de linguagem que autor cria o sentimento de hesitação no leitor e conseqüentemente, a narrativa fantástica. Ele espera que o leitor leve ao pé da letra o sentido figurado.

Poe diz que a novela deve ter efeito único e que este deve aparecer no final. E é exatamente este que nos traz mais um sentimento de ambigüidade ao terminarmos de ler o livro, pois nos perguntamos se Encarnação é fantástico-estranho – parece sobrenatural mas no fim há uma explicação racional para tudo - ou fantástico-maravilhoso - não é bem explicado e sugere algo de sobrenatural no final? Ficamos na dúvida porque Alencar, magistralmente, faz com que o fruto do amor de Hermano e Amália seja uma menina muito parecida com Julieta e que leva o nome dessa mesma, como se nela houvesse encarnado. Podemos concluir, de acordo com Louis Vax, que Alencar muito bem soube trabalhar o fantástico, pois “a arte fantástica ideal sabe se manter na indecisão.” Estava certo Marchado de Assis quando escreveu que: “José de Alencar escreveu as páginas que todos lemos, e que há de ler a geração futura. O futuro não se engana”, e acrescento, fica-se na dúvida ou ignora-se.

Seguindo a linha do futuro e atingindo o ponto onde se bifurca entre o ignorar e a dúvida; se José de Alencar tivesse vivido um pouco mais, poderia também não só ter escrito um livro fantástico como Encarnação, mas um romance de ficção científica, o primeiro escrito por um brasileiro. Segundo Lira Neto, na biografia de Alencar, O Inimigo do Rei, quando Alencar viajou à Inglaterra, teria ficado desnorteado com a Revolução Industrial à pleno vapor e isso teria lhe dado a idéia para um romance intitulado A legenda do impossível. A história era sobre uma “máquina diabólica” que tinha os cabelos e barbas feitos de “intrincadas estruturas mecânicas”. Seja como for, isso ficou apenas anotado nos papéis que deixou para trás ao partir para o futuro glorioso e nos deixar nas mãos um passado mais glorioso ainda. 

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Algumas palavras sobre a minha filosofia:





"SOU ADEPTA DA FILOSOFIA MULATA, CABOCLINHA, MUITO DA CAFUZA, 
QUE VEM CISCANDO DE TERREIRO EM TERREIRO, 
ATÉ SE ACHAR GORDA E PLENA 
PARA SER CHAMADA DE FILOSOFIA MESTIÇA."
(Chiara di Axox)





Meu destino é amar... a literatura: Vida e Obra de Suzana Flag

(Este trabalho foi realizado com o intuito de analisar um dos mais famosos pseudônimos de Nelson Rodrigues - apesar de poucos saberem se tratar de um pseudônimo deste gênio da literatura brasileira: SUZANA FLAG. Procurou-se manter no trabalho a mesma preocupação em relação à Suzana Flag e seus escritos que Nelson Rodrigues tinha ao escrever e, também, manter o tom de humor e troca de papéis entre realidade de ficção do mesmo. Espero que gostem!)

“Quero para mim o espírito desta frase,

transformada a forma para a casar com o que eu sou:

Viver não é necessário; o que é necessário é criar.”

(Fernando Pessoa)

 

 

Introdução: Mulheres na literatura

 

Ainda hoje são poucos os estudos sobre escritoras brasileiras. Isso acontece não às custas de alguma raiz machista que ainda pulsa sob as lages do pensamento brasileiro, mas, provavelmente, porque o montante de informações que temos sobre escritoras brasileiras é pequeno. Alguns nomes como Júlia Lopes de Almeida, Cora Coralina, Nísia Flores, Hilda Hilst, Cassandra Rios, Carolina Maria de Jesus [1]... são até conhecidos, mas pouco investigados se pensarmos a quantidade de estudos existentes sobre autores brasileiros como Machado de Assis, José de Alencar, Guimarães Rosa, Vinícius de Moraes...

Por exemplo, quantos conhecem Olavo Bilac e seus versos parnasianos e nunca ouviram falar em Francisca Júlia, sua contemporânea e considerada “o poeta parnasiano” mais parnasiano em seus versos. (c.f. Bosi). Já foram feitas diversas pesquisas sobre um dos primeiros romances brasileiros A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo[2]. E quantas foram feitas sobre a primeira escritora a publicar um romance em 1859, Maria Firmina dos Reis[3]?

O seu romance, Úrsula, conta a história de uma jovem (cujo nome dá o título à obra) que está presa junto a mãe enferma na fazenda do tio. O tio, que amava a mãe (e, por isso, comprara todas as dívidas do falecido marido para obrigá-las a viver sob seu teto), decide ter Úrsula para si e fugir com ela. Mas Ursula é apaixonada por um jovem bacharel, com quem tenta fugir antes que seu tio a leve para longe. Os enamorados são capturados e o jovem é morto. A moça enlouquece e amaldiçoa o vilão. O que surte efeito, pois ele morre. O livro é intrigante, segundo Norma Telles, em Escritoras, Escritas, Escrituras. Porém, não é por causa do tema de incesto, amor e morte, nem por causa do estilo gótico da narrativa. Num determinado ponto do romance, Úrsula comenta que inveja um ex-escravo, pois ele agora é mais livre do que ela. Ou seja, Reis toma como pano de fundo para discussão o tema da escravidão e da condição feminina no século XIX, algo praticamente inédito na época e incrível por ter sido escrito por uma mulher (se pensarmos a partir da mentalidade então vigente).

As escritoras do século XIX, e até mesmo, as de décadas atrás, precisavam quebrar imagens construídas em torno da condição feminina. Os anjos oitocentistas deveriam perder as penas de suas asas, arrancando uma a uma, para transformá-las em penas para escrever. As mães e donas de casa (que deveriam ser “honradas”) eram vistas como rebeldes ou excêntricas por mergulharem nas sombras de si mesmas e revelarem-se por trás e na frente das páginas de seus livros, muitas vezes, confundindo-se com suas próprias personagens.

Esse poderia ser o caso de Suzana Flag. Autora que publicou folhetins nos jornais O Jornal (de Assis Chateaubriand) e Última Hora (de Samuel Wainer) e no semanário Flan e que se tornou best-seller nos anos 1940 e 1950. Que teve ainda seu romance Meu Destino é Pecar (1944) transformado em novela de rádio, em filme de Manuel Peluffo (1952), em minissérie da Globo (1984) com Lucélia Santos, Tarcísio Meira e Marcos Paulo (nos papéis de Leninha, Paulo e Maurício, respectivamente) e em peça de teatro (2002) pela Cia. dos Atores  (dirigida por Gilberto Gawronski).

Mas quem é Suzana Flag? Quem se esconde por debaixo desse nome, por detrás das linhas dos romances folhetinescos: Meu Destino é Pecar, Escravas do Amor, Núpcias de Fogo, O Homem Proibido, A Mentira, e da “auto”biografia folhetinesca Minha Vida?

 

 

1. A literatura folhetinesca de Suzana Flag

 

O início de Meu destino é pecar se parece em muito com Rebecca, de Daphne Du Maurier (nos anos 1940 transformado em filme sob a direção de Alfred Hitchcock e com Laurence Oliver e Joan Fontaine nos papéis principais): uma jovem inexperiente se casa com um homem soturno e rico que a leva para sua casa num lugar afastado e onde todos são assombrados pela memória da linda primeira mulher dele. Ao correr dos capítulos, a história começa a ganhar matizes próprias: o viúvo é aleijado e bruto, a matriarca da família só pensa no que acha ser bom para os filhos chegando até a matar, o casamento arranjado foi para comprar uma perna mecânica para a irmã caçula, a primeira mulher morreu estraçalhada por cães, há um belo sedutor que tenta conquistar todas (principalmente, a personagem principal) e tias e irmãs solteironas criando intrigas... e temas como culpa, morte, desejo, loucura, amor, traição como pontos-chave na história.

Para que isso fosse bem desenvolvido e não soasse como uma produção mal-feita de algum melodrama antigo, era preciso que não só os temas e as personagens fossem bem trabalhadas, assim como, a escrita. E isso, Suzana Flag sabia fazer muito bem. Num tom próximo ao da oralidade, dentro de um vocabulário de fácil acesso, ela criava histórias fantasticamente dramáticas e românticas e misteriosas, sem cair na bobeiragem. No seu estilo de escrita, há jogos de linguagem que dão ao leitor um gosto de coisa bem feita e criativa:

“-O que há é o seguinte: - fez dois pontos, e continuou – ontem, quando Jorge saiu, eu notei uma coisa.”(Flag, 2003, p.68);

“Minto: uma outra pessoa parecia inquieta: Jorge.” (Flag, 2003, p.179);

 “(...) compreendi a expressão ‘palidez mortal’, que os romancistas usam tanto, ao ver como ele ficou branco.” (idem)

Contudo, há também alguns escorregões em clichês (como nos trechos abaixo, retirados de Minha Vida):

“nascera entre os dois um desses ódios que só têm solução no crime”;

“aquela pobre alma cultivava na solidão um amor imortal”;

“eu era a única pessoa, ali, que levava no coração todos os presságios”;

“eu devastara, uma a uma, todas as suas ilusões, todas as suas esperanças”;

“com os cabelos desmanchados pelo vento e a paixão que ardia nos seus olhos”;

“estávamos sozinhos, como se fosse eu a única mulher, ele o único homem”;

“um sentimento profético que há no fundo de cada um de nós e se manifesta nos momentos supremos de nossa vida”

 

Ainda:

“Era menina e tinha coração de mulher”;

“Foi a maior humilhação que uma mulher podia sofrer”;

“Ele procurava na tempestade seu perdido amor”;

“Era o meu adeus à vida” (c.f. Fonseca)

 

Apesar do brilhantismo e arrebatamento dos folhetins de Suzana Flag, o que pode perturbar os leitores mais exigentes, principalmente se lidos em forma de livro, é o que chamam na televisão e no cinema de “erros de continuação”. Há personagens que ressurgem do nada quando dados como mortos ou situações como a de Leninha, de Meu Destino é Pecar, que num capitulo tinha febre e não podia andar por causa de escoriações nos pés e no capítulo seguinte está correndo. Berta Waldman dá mais exemplos retirados de O Homem proibido, sobre a personagem Sonia e o Dr.Paulo:

“à página 17 é apresentada ao leitor como uma mulher ‘nem feia nem bonita, que na verdade, não produzia a mínima impressão.’ Já na página 33 se revela a sua condição ‘de mulher nova e linda’. À página 15 o narrador dá a conhecer ao leitor o nome do médico que atende Joyce e que será alvo do amor das primas: Dr.Paulo. À página 20 o narrador apresenta o nome do personagem como se fosse pela primeira vez...”(Waldman, p.79).

 

A explicação para isso vem através da diferença entre romance e folhetim. Neste não há um contrato com a realidade forte como num romance. E não se espera que ele seja lido diretamente como um livro e sim, em pedaços, de acordo com a publicação periódica num jornal.

O folhetim surgiu como uma espécie de casamento entre a imprensa e a literatura, um filho bastardo, renegado (c.f. Fonseca). Seu aparecimento é dado na França, na década de 1830. Desde sua criação, ele foi visto como uma “leitura digestiva”, de entretenimento, sem maiores preocupações estilísticas ou narrativas. Normalmente a temática era a mesma, a velha luta entre o bem e o mal, mas a técnica era cuidadosa na sua construção: era preciso escrever de uma forma que o leitor ficasse pregado até o próximo capítulo. Com a abertura do Romantismo para o melodramático, o folhetim também foi afetado através das paixões exacerbadas e o gosto pelo exótico e sobrenatural; a moral melodramática também apareceu de forma simplificada (a vitória do bem no final) e as personagens melodramáticas estereotipadas entre dois modelos: bondade ou malícia. Os ambientes e temas não eram os do cotidiano. Geograficamente, a história se passava em lugares distantes e cheios de mistérios (o que lembra os textos góticos) ou as ações se reduziam a casas em que todas as personagens habitavam ao longo da trama (como um mundo à parte). O tempo não tinha muita importância, mas a natureza era uma marca de fundo para os sentimentos, como era feito no Romantismo.  

Além disso tudo (que pode ser encontrado em Suzana Flag), os temas de Suzana carregam sempre um tom de morbidez e ironia cínica (principalmente, em relação à figura da mulher), afinal, “a vida como ela é; feia, vil, trágica” é a sua principal temática. Não encontramos o cotidiano em suas histórias, no entanto. As personagens não trabalham, não têm obrigações, parecendo viverem num mundo à parte e à base de emoções primordiais que são aumentadas ao quíntuplo grau. Tudo é trabalhado num plano superlativo, febril, quase mítico, em que as personagens lembram protótipos dos deuses do Olimpo. Esse exagero leva a um estado de “irrealidade” que pode perturbar alguns leitores. Esse tom dado é para não deixar que as coisas passem desapercebidas, como nós tentamos fazer no dia-a-dia. Coisas estas, que não estão diretamente relacionadas à vida das pessoas e sim, sobre as relações emocionais entre pessoas. E apesar de toda uma visão negativa da vida, cheia de mortes, tristezas e infortúnios, chega-se a um final feliz. Quem deve ser punido é punido, quem merece ser feliz é feliz, seguindo a moral tradicional do folhetim.

 

2. As mulheres dentro e fora da literatura nos anos 1940 e 1950

Dentre as milhares de possibilidades temáticas que Suzana Flag trabalhava em seus folhetins: a violência, a figura do aleijado, a luta entre mulheres (tanto entre irmãs quanto entre mães e filhas) pelo mesmo homem, a matriarca má (seja madrasta, avó, mãe, tia...), o incesto, a obsessão pela morte (convocada o tempo todo, seja para ameaçar alguém ou a si mesmo), a família como uma máfia, a vingança, o fanatismo ou obsessão por uma pessoa, etc... acredito que as mais interessantes para se ressaltar aqui são aquelas que estão relacionadas com o que estava acontecendo diretamente na sociedade brasileira e com o papel da mulher dentro desta.

Era uma época de intensa urbanização, industrialização e as mulheres estavam ganhando novos contornos dentro da sociedade. Essa mudança no comportamento feminino já vinha desde as três primeiras décadas do século XX. Dentro da sociedade, contudo, foi difícil a aceitação dessa nova posição que ia além da tríade feminina esposa/mãe/dona-de-casa, formando um quarteto com a posição de trabalhadora. As mulheres começavam a ganhar liberdade e até podiam trabalhar em determinadas profissões como na área de serviços de consumo coletivo (escritórios, comércio ou serviços públicos), enfermeira, professora, médica,... Mesmo assim, havia ainda o peso da imagem da mulher como dona do lar e isso parecia incompatível com uma profissão.

“Lugar da mulher é o lar (...) a tentativa da mulher moderna de viver como um homem durante o dia, e como uma mulher durante a noite, é a causa de muitos lares infelizes e destroçados (...) Felizmente, porém, a ambição da maioria das mulheres ainda continua a ser o casamento e a família.” (Bassanezi, p.624).

 

A entrada da mulher no mercado de trabalho ainda foi motivo de desculpa, segundo um artigo da revista O Cruzeiro, em 1959, para os homens rejeitarem “a idéia de casarem-se porque as mulheres tornaram-se muito independentes.” (idem, p.625). Se as mulheres trabalhavam era porque, muitas vezes, queriam ajudar o marido no sustento da casa e isso era tido como um vexame para o homem (já que era sua função ser o provedor).

Nos anos 1920, as mulheres já haviam passado por semelhante preconceito. Essa nova mulher, que saía sozinha nas ruas, dançava tango e maxixe, foi visceralmente criticada. Um exemplo é um artigo publicado em 1920, na Revista Feminina, assinado pelo poeta modernista (e conservador) Menotti Del Picchia:

“Caso ou não caso? Eis o dilema que arrepia a espinha do celibatário. (...) Os moços, com razão, andam ariscos (...) Será justo que um moço trabalhador e honrado entregue seu nome nas mãos de uma cabecinha fútil e doidivanas (...)?” (c.f.Maluf e Mott, p.373).

 

Ele recebeu uma resposta à altura na edição seguinte sob o pseudônimo de Rosa Bárbara:

“Os ‘rapazes honestos’ a quem os senhores Menotti Del Picchia e seus colegas de crítica se referem, os chamados ‘filhos-de-família’, tomam por elegante e de bom-tom passar suas noites ‘nas casas de divertimentos livres, ao jogo ou nos cafés, embrutecendo o espírito, aviltando a alma e arruinando o corpo pelas bebidas, cocaína, morfina ou cartas de pôquer. É a esses homens pouco educados que as esposas se entregam (...) Ainda teremos o ‘prazer de ouvir e de ver uma moça (...) quedar-se indecisa, mirando e remirando a elegância do pretendente, interrogando-se com prudência... Caso ou não caso?’” (idem).

 

Um exemplo vivo dessa vontade de liberdade é Ercília Nogueira Cobra[4], que publicou (com seu próprio nome) um romance, em 1927, intitulado Virgindade Inútil. A história é da órfã sem dote Cláudia, que foge da pobre fazenda em que vivia para se tornar uma cortesã. Um dia ela fica grávida e não sabe quem é o pai do bebê. Decide criar a criança mesmo assim e sozinha. Dá o nome ao bebê de Liberdade e dá um ensino sem preconceitos à criança. O que talvez tenha chocado mais não foi a história de Claudia em si, mas uma passagem em que é inquirida sobre a aparência da filha. Ela responde que a menina “não se parecia com o pai, mas com uma outra moça, com quem mantivera relações sexuais durante a gravidez...” (Maluf e Mott, p.398).

Se a avó de Suzana, em Minha Vida, soubesse da história de Ercília, com certeza repetiria para a escritora a mesma coisa que diz à neta no início da obra: “Há mulheres que precisam apanhar de homem.” (p.86). Essa visão do homem e o uso da violência para “regular” as coisas a sua volta não eram raras ou primitivas na época. O Código Civil de 1916 relegava a mulher à inferioridade em relação ao marido. Legalmente, segundo o código, o homem era o representante legal da família e administrador dos bens. Se o marido quisesse punir a esposa, poderia usar da violência[5]. Isso não estava diretamente escrito no código, porém, quando uma mulher entrava com uma ação contra seu marido na Justiça e ele desse “motivo” para a violência (ela o traíra ou não o obedeceu ou o injuriou... enfim, de alguma forma, a mulher usurpara o direito dado pelo código ao marido), ela passava de vítima à ré. A razão estava sempre com o homem.

O Código Civil também era para assegurar a ordem na sociedade. Mas havia momentos em que isto estava tão enraizado na mentalidade do marido, que não eram raros os suicídios desesperados porque não estavam conseguindo cumprir seu dever como provedor ou porque alguma derrota moral havia acontecido. O personagem, pai de Suzana, em Minha Vida, é um exemplo disso. Depois de descobrir a traição da mulher (que se matou por causa do amante), acaba tirando sua própria vida numa mistura de dor pela perda (amava ela) e humilhação (por não tê-la controlado como um marido devia fazer).

Uma mulher não podia trair. E se traía não podia dar boa mãe (c.f. Bassanezi). Esse era o pensamento da época que também está nas entrelinhas de Minha Vida, na posição da mãe de Suzana, uma mulher que não cuidava dela nunca e chegava até a odiá-la. As mulheres tinham que controlar seus desejos e não destruir o lar, mesmo que o marido desse suas escapulidas. Desde que eles mantivessem as aparências e continuasse provendo a família, não havia problemas para tal. A articulação traição e fidelidade, tão presente também nos textos, revela por detrás de si a concepção da época que os homens e as mulheres eram vistos como biologicamente diferentes e sua psique estava atrelada a isso. Dessa forma, cada um teria uma missão diferente a cumprir na sociedade seguindo esse determinismo biológico (homem: procura, domina, penetra, possui; mulher: atrai, abre-se, capitula, recebe). Mesmo assim, havia o desejo de civilizar o amor, regrar comportamentos sexuais, e o casamento era uma das formas de se obter isso, além de garantir controle sobre o poder e economia.

Mas mulher exigente e dominadora era sinônimo de má esposa. Em sua vida, o marido era quem devia estar em primeiro lugar. Deveria animá-lo, confortá-lo, nunca discordar dele...  E um casal não deveria ter muitos interesses em comum fora a família. “Qualidades como paciência, espírito de sacrifício e capacidade para sobrepor os interesses da família aos seus interesses pessoais.”, explica o papel da mulher a revista O Cruzeiro, de 1960. (Bassanezi, p.627).

Sacrifícios pessoais e interesses da família: duas questões primordiais nos folhetins de Suzana Flag. A todo momento, as moças são postas à prova, obrigadas a se casarem com que não querem por pressão da família. Porém, vale lembrar que, por exemplo, em Minha Vida e em Meu Destino é Pecar, Suzana e Leninha são obrigadas a se casarem com homens brutais[6] e aparentemente maus e sem caráter (Aristarco e Paulo), mas que se revelam, no fim, os personagens com mais caráter e capazes de poderem fazê-las aceitar seus destinos de mulheres casadas e subservientes aos seus maridos como toda a mulher da época deveria ser.

Em 1924, a Revista Feminina lançou um decálogo sobre como a esposa deveria agir. Em primeiro lugar havia: “Ama teu esposo acima de tudo na terra e ama o teu próximo da melhor forma que puderes; mas lembra-te de que a tua casa é de teu esposo e não do teu próximo.” O último fala sobre o marido que abandona e o fato de ficar esperando ele voltar, pois “és ainda a honra do seu nome. E quando um dia ele voltar, há de abençoar-te”. (Maluf e Mott, p.396). E o mais importante: “Lembrei-me que o casamento é para a vida toda; que nunca mais poderia olhar para outro homem.” (p.149), diz Suzana, a personagem principal em Minha Vida.

Gostava de ser fiel a um marido morto. Isso lhe parecia bonito, doce. Tinha a impressão de que, se casasse, faria uma traição, uma infidelidade. Dizia a todo o mundo, sóbria, digna, castíssima no seu luto:

- Estou bem assim! (Núpcias de Fogo, de Suzana Flag)

 

Os livros tentavam incentivar esse pensamento de mulheres obedientes e apaixonadas em agradar o marido de qualquer jeito, mesmo depois da morte. A mulher deveria sempre se ajustar e abrir concessões ao marido sempre e não esperar um retorno por parte dele. Tinha que ser submissa e pura sempre e se necessário, se auto-humilhar, como as personagens de Suzana Flag. Outra amostra disso é o Teste de Bom Senso, lançado pela revista Jornal das Moças, nos anos 1950. O teste funcionava da seguinte forma: perguntava-se o que a esposa faria caso soubesse que o marido a enganava com uma aventura banal, “como há tantas na vida dos homens” (c.f. Bassanezi). Havia três respostas que podiam ser escolhidas e para cada uma havia uma análise sobre a decisão tomada. As que optavam por criar uma violenta cena de ciúmes eram vistas como as de temperamento incontroláveis e as mais propensas a perder o marido e, ainda explica, “após uma dessas pequenas infidelidades, volta mais carinhoso e com um certo remorso.” Também havia a opção de deixar a casa. A revista avisava que essa era a decisão mais insensata a se tomar. “Que mulher inteligente que deixa o marido só porque sabe de uma infidelidade? O comportamento poligâmico do homem é uma verdade; portanto, é inútil combatê-lo. Trata-se de um fato biológico que para ele não tem importância”. Uma terceira opção era a de fingir ignorar tudo e arrumar-se mais para atraí-lo (“Um homem que tem uma esposa atraente em casa, esquece a mulher que admirou na rua.”, era o ditado da época). Essa é tida como a coisa mais acertada a se fazer. A possibilidade de desquite ou trair em retorno (a maior humilhação que um homem poderia sofrer e que levaria até à morte, sem que ele fosse condenado pela opinião pública ou pela justiça) não eram nem cogitadas, pois em ambas a mulher sofria preconceito.

A distinção entre o papel masculino e o feminino era necessário na época. Principalmente, depois da Segunda Guerra Mundial quando os papéis tinham se mesclado (mulheres trabalhando enquanto os maridos lutavam nos campos de batalha). Agora havia propagandas sobre a reconstrução da família e os deveres da mulher como esposa e mãe. A mulher era treinada para ser dona-de-casa, mãe e esposa, e deveria manter isso tudo com muita maestria. Se o marido lhe era infiel, ou era por acusa do instinto dele de macho ou porque a mulher não estava dando o máximo para agradá-lo. Nunca foi posta em questão a moral do homem que era infiel.

Essas eram as expectativas, aquilo que se queria que as moças seguissem. Mas será que isso realmente era seguido? Ou era existente apenas na literatura de Suzana Flag?

Numa conversa entre Suzana e Noêmia, em Minha Vida, após Hermínia dar um beijo na boca do seu amado Jorge, as duas jovens discutem a ação da outra, mostrando uma divisão comum na época: entre moças de família e as moças levianas.

“-Então, você não viu? Aquilo que ela fez com Jorge? Teve a iniciativa de beijá-lo e na frente de todo o mundo, com todo o mundo vendo! Achei isso bonito, lindo essa coragem! Você não acha, Suzana?

-Depende.

-Como depende?

Pensei um pouco, antes de responder:

-A mulher que faz isso, está tomando uma atitude que só o homem deve ter.

-Bobagem! – interrompeu Noêmia; na sua excitação, levantou-se – Por que a mulher deve sempre esperar que o homem faça? Por que não tomará ela a iniciativa?

-Uma questão de pudor.” (Flag, 2003, p.160).

 

Obviamente, a personagem principal toma a posição da moça de família da época, aquela de moral dominante, que obtinha um casamento modelo, não ficava mal-falada, respeitava os pais, tinha gestos contidos, conservava a inocência sexual, não usava roupas ousadas (nesse caso Suzana usa, pois herdou as roupas da mãe e a avó queria vê-la sedutora para arrumar um pretendente), não saíam com rapazes sozinhas – o casal estava sempre acompanhado pelos “seguradores de vela” - ou não iam para lugares escuros, não permitiam beijos ou abraços intensos. Noêmia representa a moça leviana, um tipo de moça que permitia intimidades, “desviava-se do bom caminho”, tida como a que nunca casaria porque nenhum rapaz gostaria de ter uma moça assim como mãe de seus filhos.

Como os homens não podiam tomar liberdades com as namoradas que eram moças de família, eram incentivados a fazer isso nos prostíbulos ou saírem com moças levianas. Eram raros os casos em que rapazes aceitavam se casar com moças já defloradas. No Código Civil, inclusive, havia um artigo que dizia que existia possibilidade de anulação do casamento se o recém-casado descobrisse que sua noiva não era mais virgem[7].

Nos folhetins de Suzana Flag, a loucura está atrelada ao conhecimento do amor carnal ou proximidades com ele fora do casamento. A perda da virgindade ou o tipo de moça leviana que Noêmia se torna ao longo da história (quando beija Aristarco e quase foge com ele), normalmente, levam a loucura. É tão importante o herói se mostrar honrado no final quanto a heroína ser virtuosa[8]. Num trecho de conversa, Aristarco deixa isso claro à Suzana, sua noiva e sobrinha:

“Eu não admito mulher que tenha passado. Eu quero ser o passado, o presente, o futuro da mulher. Só eu devo existir antes e depois – compreendeu? São uns imbecis esses homens que não se incomodam com o passado. Eu me incomodo – ouviu? – me incomodo e não admito!” (Flag, 2003, p.169).

 

Nesse trecho, como em muitos outros, podemos notar que a sexualidade não está diretamente apresentada nas histórias. O sexo está subentendido no nível da linguagem.

“-Peço-lhe, por tudo que há de sagrado. E depois, há o seguinte: se você não quiser; sabe o que ele faz?...

Fez um suspenso para me impressionar. Eu, realmente, senti o coração apertado, uma angustia nova. Espiamos uma à outra. Vovó baixou a voz:

-Se você não quiser, ele tem outros recursos.

–Quais? – quis saber.

E ela, lacônica:

- A força.

–Como?

–Ele usa a força. Você não se iluda, Suzana, não se iluda. Ele é dono de todas nós. Faz com a gente o que quiser. Mas se você ceder é outra coisa.” (Flag, 2003, p.151)

 

O sexo é como um silêncio ou um “dar a entender”, nunca diretamente chamado ou aparecendo em alguma cena.  Assim também era na vida das moças de família. Algumas tinham acessos à manuais que vinham com revistas. Mesmo assim, expressões como: realidade a ser enfrentada, missão a ser cumprida, necessidades do casamento, obrigações conjugais, familiaridades, intimidades, liberdades, aventuras... eram usadas no lugar da palavra sexo ou relações sexuais. A palavra mais ousada utilizada foi na revista Querida, que escreveu “relações física”. Somado a isso, não se comentava o prazer que a mulher poderia ter proporcionado pela relação. Isso poderia ser muito perigoso se sabido e não poderia ser objetivo para a mulher. Sua função não era obter prazer próprio, mas dar prazer ao marido.

Apesar de toda essa construção moralista da época, o tema principal em Suzana Flag, por mais piegas que possa parecer para nossos olhares “modernos”, continuava sendo o amor, ou a tentativa de encontrar o amor num casamento feito sem amor. Não era um amor qualquer. Era um amor dentro de limites, que não fizesse a moça de família se tornar uma moça leviana (como Leninha, que fica na tentação com Maurício):

“As mulheres vivem para o amor. Romantismo e sensibilidade eram, nos Anos Dourados, características tidas como especialmente femininas (...) Amor romântico sim, mas domesticado! Nada de paixões, que violem as leis da moral e da ordem. O amor só seria aceitável se não rompesse com os moldes convencionais de felicidade ligada ao casamento legal e à prole legítima (...) Assim como tornou-se comum se dizer que o casamento só deve ocorrer quando houver amor, também era tido como certo que o amor verdadeiro e digno é aquele feito de juízo e razão. A paixão, por outro lado, é o amor impossível, loucura passageira ou efervescência do juízo, sentimento insensato que jamais poderá se concretizar numa união legal.” (Bassanezi, p.618).

 

Algumas passagens exprimem bem essa idéia:

“Todo amor é eterno. Se não é eterno, não era amor” (em Meu destino é pecar),

“O grande caso de d. Margarida fora Maurício, o pai de Lúcia. Deste gostara, realmente, com uma dessas paixões fanáticas, exclusivas, que uma mulher não esquece.” (em Núpcias de Fogo),

“A mulher pode dizer que não, mas compreende o crime de amor; quer dizer, não o considera crime. Gosta dos homens ou, antes, dos amores assim violentos, selvagens – gostam sim!” (Flag, 2003, p.95),

“Amor infeliz é melhor do que nada.” (Flag, 2003, p.203)

 

Peça fundamental dessa relação entre casamento e amor é o beijo como ato consumador e não o sexo. No início de Meu Destino é Pecar, Leninha se recusa a beijar Paulo, porque “eu sempre quis ter um namorado, um noivo, um marido, que eu amasse, que eu pudesse beijar na boca....” mas ela não amava ele. Outro momento decisivo em relação ao beijo como um ato íntimo e pessoal é numa conversa entre as irmãs de Jorge e Suzana:

 “Maria Helena, pelo que dava a entender, achava um fenômeno uma moça que não tivesse sido beijada antes do atual namorado. Caí na asneira de expor meu ponto de vista a respeito:

 -Acho beijo uma coisa muito séria.

Disse isso com uma gravidade, um tom definitivo que, ainda hoje, me faz corar de vergonha. Elas me olharam de alto a baixo:

 -Séria por quê?

–Tão natural!

Noêmia deu-me conselhos:

-Seja mais moderna!

–Que é que tem de mais o beijo?

Engasguei, sem ter o que dizer. Afinal, a minha concepção de amor era tão diferente! Como dizer àquelas duas, explicar o que eu achava? Elas não compreenderiam nunca que um homem e uma mulher que se amam se julgam Adão e Eva, se supõem os criadores da família humana. Elas jamais veriam o amor assim, absoluto, exclusivo, cheio de eternidade. Noêmia teve uma confissão espontânea:

-Pois eu, minha filha, se fosse contar os beijos que já me deram!

Seria verdade aquilo ou brincadeira? Subitamente, sentia-me inferior diante daquela moça que possuía uma experiência amorosa, conhecimento de carícias com que eu nem sonhava. Maria Helena, também. Esta foi mais longe:

-A coisa mais comum é uma moça ter vários namorados, ao mesmo tempo. A gente pode ter namorado e flertar com outros.

–Mas isso é traição! –teimei, na minha inocência obstinada.

–Que o quê!

–Traição coisa nenhuma! Você parece criança!

Usei o argumento desesperado:

-O meu caso com Jorge, por exemplo. Se eu tiver outros namorados, além dele – está certo? Ou não está?

As duas me olharam, com surpresa. Evidentemente não esperavam por esta pergunta, ficaram sem jeito e se entreolharam. Noemia falou:

-Bem, aí seria diferente.

 –Como diferente?

–Porque você e Jorge vão se casar, já há um compromisso, é outra coisa. Isso muda a situação. Agora, se fosse um simples namoro, você teria o direito de flertar, claro. Por que não? Antigamente é que a moça não podia fazer isso, aquilo, tudo ficava feio. Minha mãe contava –imagine- que, no seu tempo, a mulher não podia nem cruzar as pernas em público. Todo o mundo dizia logo que ela era assanhada e coisas parecidas. Tudo mudou!” (Flag, 2003, p.91-92)

 

Isso mostraria porque Suzana merecia o final feliz na ilha deserta com Aristarco e não, Noêmia. Apenas as moças de família se casam e têm um final feliz.

Será? Suzana Flag nunca escreveu sobre o que acontecia depois que os pares amorosos se acertavam... sobre a vida cinza do dia-a-dia.

 

 

3. Quem era, de fato, Suzana Flag?

 

Eu posso começar esta história dizendo que me chamo Suzana Flag. E acrescentando: sou filha de canadense e francesa; os homens me acham bonita e se viram, na rua, fatalmente, quando passo. Uns olham, apenas; outros me sopram galanteios horríveis, mas já estou acostumada, graças a Deus; há os que me seguem; e um espanhol, uma vez, de boina, disse, num gesto amplo de toureiro: “Bendita sea tu madre!". Lembrei-me de minha mãe que morreu me amaldiçoando e senti um arrepio, como se recebesse, nas faces, o hálito da morte. Bem: acho que o meu tipo é miúdo; não demais, porém. E foi isso talvez que levou certo rapaz a me dizer, pensativo: “Se você cantasse, daria uma boa madame Butterfly”. Há mulheres decerto menores do que eu. Mas gosto de ser pequena, de dar aos homens uma impressão de extrema fragilidade e de me achar, eu mesma, eternamente mulher, eternamente menina. Às vezes, nem sempre, tenho uma raiva de umas tantas coisas que existem em mim e que atraem os homens. E, nessas ocasiões, desejaria ser feia ou, pelo menos, desinteressante, como certas pequenas que impressionam um homem ou dois, e não todos. O que acontece comigo é justamente o seguinte: eu acho que impressiono, senão todos, pelo menos a maioria absoluta dos homens. Mesmo homens de outras regiões, quase de outro mundo, se agradam de mim. Inclusive aquele marinheiro norueguês, alvo e louro, que me olhou de uma maneira intensa, de uma maneira que me tocou tanto quanto uma carícia material. Tenho vinte e poucos anos e devo dizer, não sem uma certa ingenuidade, que vivi muito mais, que tive experiências, aventuras, que mulheres feitas não têm. Para vocês compreenderem isso, precisavam me conhecer como eu sou fisicamente, isto é, ver os meus olhos, a minha boca, o modo de sorrir, as minhas mãos, todo o meu tipo de mulher. Se vocês me conhecessem assim — eu poderia dizer: “Esta é a história de minha vida, esta é a história de Suzana Flag”... Mas é preciso advertir: vou contar tudo, vou apresentar os fatos tais como aconteceram, sem uma fantasia que os atenue. Isso quer dizer que o meu romance será pobre de alegria; poderia se chamar sumariamente: “Romance triste de Suzana Flag”. (Flag, 2003, p.9-10).

 

Assim Suzana Flag começa a sua “autobiografia”. Uso a expressão entre aspas, pois em nada (tanto estilo quanto narrativa) Minha Vida se diferencia de qualquer outro romance da autora. Inclusive, apesar dela fazer questão de ressaltar “vou apresentar os fatos tais como aconteceram, sem uma fantasia que os atenue”, na frase seguinte já encara esses fatos e seu livro como constituintes de um romance (tradicionalmente, oposto à biografia por ser sinônimo de ficção). Essa escorregadela nos faz acreditar ainda mais que Suzana não escreveu sobre sua vida: o suicídio dos pais (e a dramática cena em que a mãe lhe roga uma praga antes de morrer), seu complicado noivado com Jorge (amante de sua mãe e filho bastardo de sua avó), seu casamento com o tio de criação Aristarco, a fuga para a ilha numa lancha, o quase rapto pelo aleijado Cláudio... (pontos comuns na sua ficção). Minha Vida é tão difícil de ser considerado biográfico (num sentido tradicional, sinônimo de verdade), que mesmo quando foi lançado em 1946, depois do sucesso de Meu destino é pecar, as leitoras de O Jornal, fãs de Suzana, tiveram dificuldades aceitar a história como Verdade.

Mesmo assim, sem revelar sua identidade, Suzana continuou fazendo sucesso. Minha Vida saiu em O Jornal por três meses seguidos, seguindo os passos do famoso folhetim anterior. Saiu em formato livro no mesmo ano e vendeu muito, mas uma vendagem menor do que anterior Meu Destino é Pecar.

Não se sabe dizer quem era Suzana Flag, o que viveu realmente para escrever esses folhetins que fizeram muito sucesso entre as mulheres da época e ajudou a reerguer O Jornal de Assis Chateaubriand. Nem aonde Leão Gondim de Oliveira, diretor de O Jornal, conseguiu os folhetins de Suzana. Só podemos tentar imaginar quem era a mulher por trás da máquina de escrever e se perguntar se seu nome era realmente Suzana Flag. O nome dela, também, em inglês, pode ter sido sugerido por Gondim ou pelo diretor geral Freddy Chateaubriand. Nessa época, textos assinados por nomes estrangeiros ganhavam uma credibilidade maior. Ou se ela usava o pseudônimo como uma forma de proteção a sua família.

Isso era comum no final do século XIX e no início do século XX, quando mulheres usavam pseudônimos para poderem escrever e não serem mal-vistas ou terem suas famílias de alguma forma prejudicadas pelo que escreviam. Assim fizera a escritora Maria Benedicta Câmara Bormann, nascida numa prestigiada família e casada com o Ministro da Guerra, José Bernardino Bormann. Ela assinava sob o nome Delia, lançando no jornal O Paiz, em finais do século XIX, Carta a Sindol, sobre uma moça que recusa se casar com um bom partido escolhido pela família e Lésbia, história de uma jovem que se separa do marido tirano e decide escrever sua vida. Temas que poderiam comprometer seu marido, pois mostravam uma nova mulher que ia se delineando na sociedade brasileira oitocentista: uma mulher mais independente e que se achava no direito de saber para si própria o que era melhor, ao invés de deixar que esse tipo de decisão ficasse à cargo do pai ou do marido. Porém, essa mulher ainda demoraria a ganhar sua real fundamentação na sociedade brasileira. E os anos em que Suzana Flag viveu, 1940 e 1950, foram apenas uma época em que essa independência era enfraquecida através de conselhos em revistas e das pressões sociais, querendo ainda manter a mulher presa ao marido e a família, pensando primeiro neles e só depois em si mesma.

Por que os folhetins de Suzana Flag faziam sucesso? Porque contavam de uma forma fácil (muito próximo à oralidade), divertida e bem escrita histórias rocambolescas, aventuras amorosas levemente apimentadas e recheadas de sentimentos extremos. Era uma forma de entretenimento barato para as mulheres, pois vinham nos jornais que os maridos compravam, e ajudavam a sair da rotina entre arrumar a casa e cuidar dos filhos e do marido.

Os folhetins de Suzana formaram uma espécie de sustentáculo de venda. Cada capítulo diário trazia um final eletrizante ou revelador, que ficava em suspenso até o dia seguinte, quando era preciso comprar o jornal novamente para ler a continuação. Isso elevou vertiginosamente as vendas de O Jornal, que estava entrando em colapso nos últimos anos. De três mil exemplares vendidos, passou para seis mil quando Suzana começou a publicar Meu Destino é Pecar. Depois o número dobrou e em quatro meses chegou quase a 30 mil exemplares vendidos.

Em junho de 1944, com o final de Meu destino é pecar, foi decidido que ele seria publicado em livro pela Edições O Cruzeiro (que eram baratas), vinculadas a revista de sucesso O Cruzeiro. A propaganda foi massiva tanto nos jornais e revistas do grupo Chateaubriand quanto nas rádios. A primeira edição foi de oito mil exemplares, o que não foi o suficiente. Em finais de junho, o livro já havia vendido 12 mil exemplares e em outubro atingiu a casa dos 50 mil. Segundo Freddy Chateaubriand, foram vendidas mais de 300 mil cópias de Meu Destino é Pecar, antes do título ter sido vendido à editora Martins, em São Paulo, em 1946, onde chegou a 12 edições.

Meu Destino é Pecar ainda virou novela de rádio (rádio de Chateaubriand, obviamente), porém, teve que passar por algumas adaptações para ser repassada, transformando-se quase numa história leve para mocinhas. Na época, o rádio era um instrumento que reunia toda a família na sala (o que o televisor fez no seu aparecimento, pois hoje cada um tem uma tv no seu quarto e as pessoas não mais precisam se reunir para ver uma mesma coisa) e era preciso haver uma certa censura. Por mais que Suzana não deixasse claro o teor sensual de suas obras, o tema adultério aparecia sem qualquer máscara de beleza. O rádio, naquela época, como nos lembra Ruy Castro, nem podia colocar no ar a expressão “amante da música” por possuir a palavra “amante”, então, como fazer com uma história em que o tema adultério era fundamental para o desenrolar da trama? Realmente, foi preciso transformar a história toda. A mesma censura foi feita no filme de 1952 de Manuel Peluffo. A palavra amante foi trocada por amiga.

Em setembro do mesmo ano, começou a ser publicado outro folhetim de Suzana Flag, intitulado: Escravas do Amor. Esse era a história de uma herdeira, Malu, que vai se casar com o jovem Ricardo. No dia do pedido de casamento, Ricardo aparece morto misteriosamente e Malu era a única pessoa que estava com ele. Enquanto vai sendo investigada a morte de Ricardo, suicídio ou assassinato, a mãe de Malu revela que a grande paixão de Ricardo era ela e não a filha. Esse é o início da história que saiu não apenas em O Jornal, mas em todos os jornais de Chateaubriand. Em seguida, com o término do folhetim, saiu o livro.

Entre 4 de agosto e 12 de setembro de 1948, foi publicado Núpcias de Fogo, a história de duas irmãs, Lúcia e Dóris, que amam o mesmo homem, na revista O Cruzeiro e depois em O Jornal.

As senhoras mais velhas eram as mais fascinadas pelas histórias da escritora. Conta-se que um dia, 200 senhoras invadiram a redação de O Jornal, que ficava na avenida Venezuela, para reclamar um erro cometido pela gráfica. Foi solto um capítulo por engano e elas queriam saber como a história da véspera de Meu destino é pecar tinha continuado. O jornal acalmou as senhoras publicando o capítulo faltante no dia seguinte.

Eram escritas, incrivelmente, catorze laudas datilografadas, uma média de 420 linhas, por dia. Que tipo de mulher teria tempo para escrever isso numa época em que ainda vivia-se sob a ideologia de que a mulher tinha que ficar em casa cuidando da família? Criam-se assim, perguntas sobre Suzana: era ela uma esposa “relaxada” ou uma solteirona convicta?

Dentre as milhares de cartas para Suzana que a edição do jornal recebia, houve, certa vez, a de um presidiário que se apaixonou por ela. Suzana lhe mandou uma resposta insinuando que estava comprometida. Não entrou em detalhes se era casada ou se ia se casar. A história terminou como num romance de Suzana: happy end. O presidiário foi obrigado a se conformar com tal e chegou a convidá-la para ser madrinha do seu casamento na prisão.

Poderíamos levantar outra hipótese à respeito da vida pessoal de Suzana Flag. A sua primeira aparição teria sido disfarçada sob o “pseudônimo” de Maria Lúcia, em O Globo Feminino. É um artigo, escrito à maneira Flag, que comentava a famosa peça de Nelson Rodrigues, Vestido de Noiva, logo depois da sua estréia. Será, então, que Suzana, na verdade se chamava Maria Lúcia? E como ela era fisicamente? Bonita como a descrição inicial em Minha Vida ou o contrário: baixinha, gordinha e de óculos, uma Maria Lúcia ao invés de uma Suzana Flag? Dizem que os leitores acreditavam na sua beleza e que achavam que podia ser algo entre Ingrid Bergman e Marlene Dietrich.

Seja como for, em 1949 Suzana Flag sumiu e apareceu uma colunista e conselheira amorosa chamada Myrna no Diário da Noite, irmão de O Jornal, comandado por Freddy Chateaubriand. Suzana Flag só reapareceu anos mais tarde no jornal A última hora, de Samuel Wainer. Era 1951 e ela lançava O homem proibido. A história, muito parecida com o início de Minha Vida, contava a história de Joyce cuja mãe se suicida e o pai some, sendo obrigada a ficar com uma prima sete anos mais velha. Tudo parecia começar a se resolver quando surge um belo médico que faz com que a relação entre as primas se complique. O ponto clímax é quando Joyce fica temporariamente cega.

Essa história é considerada por alguns críticos como a mais cuidada no arranjo das palavras. Provavelmente, porque fazia tempo que Suzana não publicava nada e devia estar com saudades de escrever. Será que parara por causa do casamento? À pedido do marido que achava que estava relegando as tarefas domésticas com essa “mania terrível” de escrever? Ou será que era porque acabara de ter o primeiro filho e decidira ficar alguns anos tomando conta da cria até que o impulso literário a chamasse de volta às páginas?

O último folhetim de Suzana, A Mentira, saiu no semanário colorido Flan (que durou apenas nove meses), de Wainer, lançado em abril de 1953. O nome de Suzana Flag estava entre expressivos nomes da literatura como Joel Silveira, Otto Lara, Vinicius de Moraes, João Cabral de Melo Neto, Dorival Caymmi, Hélio Pellegrino,... Era a história de um pai obcecado por sua filha caçula, Lúcia. Um dia, a menina de 14 anos, revela que está grávida, o que é um choque para a família (e para o leitor).

Ainda sob o comando de Samuel Wainer, Suzana assinava o correio sentimental Sua lágrima de amor. Depois disso, Suzana Flag desapareceu, sem deixar vestígios, mantendo o mesmo mistério que conseguiu sustentar capítulos a fio nos seus folhetins.

 

 

Conclusão: Um pseudônimo para Suzana Flag

 

Suzana Flag conseguiu manter o anonimato ao longo dos anos. Sua vida, um mistério que só pode ser encontrado diluído nas páginas de seus romances. Seu destino era amar a literatura e se tornar parte dela, fosse como personagem principal de Minha Vida ou fosse como um mito nos corredores dos jornais cariocas. Não importa. O que importa para nós em Suzana é seu legado literário pelo qual viveu. Como dizia Fernando Pessoa: “viver não é necessário; o que é necessário é criar”.

Se tivéssemos que revelar a verdadeira identidade de Suzana Flag, teríamos muitas dificuldades por causa dessa brincadeira entre ficção e realidade que constrói a sua vida e obra. Porém, há indícios que nos levam a crer que Suzana Flag está de alguma forma relacionada a Nelson Rodrigues, o famoso, ululante e fluminense “anjo pornográfico”. Os dois trabalharam nos mesmos jornais e na mesma época. Outra prova disso está nas linhas do jornal Ultima Hora. Depois que Suzana parou de escrever sua coluna sentimental, surgiu uma outra coluna, com teor e temas muito parecidos com os de seus folhetins. A vida como ela é... era sinônimo de sucesso, principalmente entre leitores masculinos, com sua escrita jornalística e irônica, mas similar a de Suzana em alguns pontos e frases. A partir disso só uma conclusão pode ser tirada: Nelson Rodrigues era pseudônimo de Suzana Flag.

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Bibliografia:

BASSANEZI, Carla. Mulheres dos anos dourados. In: História das Mulheres no Brasil, PRIORI, Mary (org.). São Paulo: Editora Contexto e Editora Unesp, 2000.

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994, 42ª edição.

CASTRO, Ruy. O Anjo Pornográfico – a vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Cia. das Letras.

FLAG, Suzana. Meu Destino é Pecar. Coleção Prestígio. Rio de Janeiro: Editora Ediouro.

FLAG, Suzana. Minha Vida. São Paulo: Cia. das Letras, 2003.

MALUF, Marina e MOTT, Maria Lucia. Recônditos do Mundo Feminino. In: História da Vida Privada no Brasil. República: da Belle Époque à Era do Rádio. SEVCENKO, Nicolau (org.). São Paulo: Cia. das Letras, 1998.

TELLES, Norma. Escritoras, escritas, escrituras. In: História das Mulheres no Brasil. PRIORI, Mary (org.). São Paulo: Editora Contexto e Editora Unesp, 2000.

WALDMAN, Berta. A cena e o cio nacional. In: Toward Sócio-CriticismL Luso-Brazilian Literatures.REIS, Roberto (org.). Tempe: Arizona State University, 1991.


Sites:

FONSECA, João Barreto. Folhetim: o sensacional a conta-gotas, o bastardo fatiado, o sonho seriado. Site: http://reposcom.portcom.intercom.org.br/bitstream/1904/4360/1/NP2FONSECA.pdf (Visitado em: 27/10/2007)

E-Dicionário de Termos Literários, melodrama: http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/M/melodrama.htm (Visitado em: 27/10/2007)



[1] Há um catalogo com informações sobre algumas escritoras brasileiras do século XVIII ao XX, organizado pelo Grupo de Trabalho Mulheres e Literatura, da ANPOLL (Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Letras e Linguística) que pode ser acessado pelo site: http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/index1.htm.

 

[2] Muitas pessoas acham que A Moreninha (1844) é de fato o primeiro romance romântico brasileiro. Mas há críticos que tomam O filho do pescador (1843) de Antônio Gonsalves Teixeira e Souza como o primeiro, mesmo com algumas falhas na sua narrativa romanesca.

 

 

[4] A história de Ercília em si já daria um bom romance. Ela era filha de uma família decadente de fazendeiros. Fica órfã e é educada para se tornar esposa e mãe dedicada. Foge de casa e é encontrada e internada numa instituição para “moças perdidas”. Depois se torna professora e sob o pseudônimo de Suzy se torna dona de uma “casa de mulheres” em Caxias do Sul (Rio Grande do Sul).

 

[5] Numa cena de Minha Vida, comenta-se a relação violência e amor e a necessidade de algumas mulheres em sentirem-se ou aceitarem ser dominadas por homens: “-Mas isso é bom; é bom para o amor, que a mulher tenha medo do homem. Eu –está ouvindo?- só gostarei de um homem que, um dia, se eu der motivo, possa me partir em dois, me matar. Este homem eu amarei toda a vida! É preciso que eu tenha medo dele!” (Flag, 2003, p.95).

 

[6] “Mas havia, talvez, no fundo de cada uma de nós, mulheres, uma espécie de prazer, secreto, inconfessado, agudo, diante da cena bestial (...) um pouco desse deslumbramento que a mulher sente diante da força bruta.” (Flag, 2003, p.117).

 

[7] Havia medo, tanto na sociedade, quanto em Meu Destino é Pecar, da mulher não conseguir controlar seu impulsos e desejos e acabar sendo seduzida pelo galã irresistível. Interessante pensar que tanto nesse folhetim de Suzana Flag quanto no Minha Vida, os dois protótipos de galãs/canalhas, Maurício e Jorge, acabam morrendo no final.

 

[8] No primeiro capítulo de Escravas do Amor, a personagem principal, Malu, se mostra o protótipo da moça de família, mas com uma certa “maldade” que sempre aparece atrelada a figura feminina nos folhetins de Suzana: “Tinha um pequeno corpo, frágil, leve, elástico e belo Queria que até lá ele nada conhecesse do seu corpo, a não ser que o pudesse adivinhar através do vestido. Isso era uma maldade inteligente de mulher, uma maneira de não se banalizar aos olhos do namorado. Até aquele momento não fora beijada nem por Ricardo, nem por ninguém. Podia dizer: "Eu nunca fui beijada!". E não adiantavam os comentários das primas: "Que é que tem beijo? Ora, Malu". Solange ia mais longe: "Beijo não quer dizer nada!".”