quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Algumas palavras sobre a minha filosofia:





"SOU ADEPTA DA FILOSOFIA MULATA, CABOCLINHA, MUITO DA CAFUZA, 
QUE VEM CISCANDO DE TERREIRO EM TERREIRO, 
ATÉ SE ACHAR GORDA E PLENA 
PARA SER CHAMADA DE FILOSOFIA MESTIÇA."
(Chiara di Axox)





Meu destino é amar... a literatura: Vida e Obra de Suzana Flag

(Este trabalho foi realizado com o intuito de analisar um dos mais famosos pseudônimos de Nelson Rodrigues - apesar de poucos saberem se tratar de um pseudônimo deste gênio da literatura brasileira: SUZANA FLAG. Procurou-se manter no trabalho a mesma preocupação em relação à Suzana Flag e seus escritos que Nelson Rodrigues tinha ao escrever e, também, manter o tom de humor e troca de papéis entre realidade de ficção do mesmo. Espero que gostem!)

“Quero para mim o espírito desta frase,

transformada a forma para a casar com o que eu sou:

Viver não é necessário; o que é necessário é criar.”

(Fernando Pessoa)

 

 

Introdução: Mulheres na literatura

 

Ainda hoje são poucos os estudos sobre escritoras brasileiras. Isso acontece não às custas de alguma raiz machista que ainda pulsa sob as lages do pensamento brasileiro, mas, provavelmente, porque o montante de informações que temos sobre escritoras brasileiras é pequeno. Alguns nomes como Júlia Lopes de Almeida, Cora Coralina, Nísia Flores, Hilda Hilst, Cassandra Rios, Carolina Maria de Jesus [1]... são até conhecidos, mas pouco investigados se pensarmos a quantidade de estudos existentes sobre autores brasileiros como Machado de Assis, José de Alencar, Guimarães Rosa, Vinícius de Moraes...

Por exemplo, quantos conhecem Olavo Bilac e seus versos parnasianos e nunca ouviram falar em Francisca Júlia, sua contemporânea e considerada “o poeta parnasiano” mais parnasiano em seus versos. (c.f. Bosi). Já foram feitas diversas pesquisas sobre um dos primeiros romances brasileiros A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo[2]. E quantas foram feitas sobre a primeira escritora a publicar um romance em 1859, Maria Firmina dos Reis[3]?

O seu romance, Úrsula, conta a história de uma jovem (cujo nome dá o título à obra) que está presa junto a mãe enferma na fazenda do tio. O tio, que amava a mãe (e, por isso, comprara todas as dívidas do falecido marido para obrigá-las a viver sob seu teto), decide ter Úrsula para si e fugir com ela. Mas Ursula é apaixonada por um jovem bacharel, com quem tenta fugir antes que seu tio a leve para longe. Os enamorados são capturados e o jovem é morto. A moça enlouquece e amaldiçoa o vilão. O que surte efeito, pois ele morre. O livro é intrigante, segundo Norma Telles, em Escritoras, Escritas, Escrituras. Porém, não é por causa do tema de incesto, amor e morte, nem por causa do estilo gótico da narrativa. Num determinado ponto do romance, Úrsula comenta que inveja um ex-escravo, pois ele agora é mais livre do que ela. Ou seja, Reis toma como pano de fundo para discussão o tema da escravidão e da condição feminina no século XIX, algo praticamente inédito na época e incrível por ter sido escrito por uma mulher (se pensarmos a partir da mentalidade então vigente).

As escritoras do século XIX, e até mesmo, as de décadas atrás, precisavam quebrar imagens construídas em torno da condição feminina. Os anjos oitocentistas deveriam perder as penas de suas asas, arrancando uma a uma, para transformá-las em penas para escrever. As mães e donas de casa (que deveriam ser “honradas”) eram vistas como rebeldes ou excêntricas por mergulharem nas sombras de si mesmas e revelarem-se por trás e na frente das páginas de seus livros, muitas vezes, confundindo-se com suas próprias personagens.

Esse poderia ser o caso de Suzana Flag. Autora que publicou folhetins nos jornais O Jornal (de Assis Chateaubriand) e Última Hora (de Samuel Wainer) e no semanário Flan e que se tornou best-seller nos anos 1940 e 1950. Que teve ainda seu romance Meu Destino é Pecar (1944) transformado em novela de rádio, em filme de Manuel Peluffo (1952), em minissérie da Globo (1984) com Lucélia Santos, Tarcísio Meira e Marcos Paulo (nos papéis de Leninha, Paulo e Maurício, respectivamente) e em peça de teatro (2002) pela Cia. dos Atores  (dirigida por Gilberto Gawronski).

Mas quem é Suzana Flag? Quem se esconde por debaixo desse nome, por detrás das linhas dos romances folhetinescos: Meu Destino é Pecar, Escravas do Amor, Núpcias de Fogo, O Homem Proibido, A Mentira, e da “auto”biografia folhetinesca Minha Vida?

 

 

1. A literatura folhetinesca de Suzana Flag

 

O início de Meu destino é pecar se parece em muito com Rebecca, de Daphne Du Maurier (nos anos 1940 transformado em filme sob a direção de Alfred Hitchcock e com Laurence Oliver e Joan Fontaine nos papéis principais): uma jovem inexperiente se casa com um homem soturno e rico que a leva para sua casa num lugar afastado e onde todos são assombrados pela memória da linda primeira mulher dele. Ao correr dos capítulos, a história começa a ganhar matizes próprias: o viúvo é aleijado e bruto, a matriarca da família só pensa no que acha ser bom para os filhos chegando até a matar, o casamento arranjado foi para comprar uma perna mecânica para a irmã caçula, a primeira mulher morreu estraçalhada por cães, há um belo sedutor que tenta conquistar todas (principalmente, a personagem principal) e tias e irmãs solteironas criando intrigas... e temas como culpa, morte, desejo, loucura, amor, traição como pontos-chave na história.

Para que isso fosse bem desenvolvido e não soasse como uma produção mal-feita de algum melodrama antigo, era preciso que não só os temas e as personagens fossem bem trabalhadas, assim como, a escrita. E isso, Suzana Flag sabia fazer muito bem. Num tom próximo ao da oralidade, dentro de um vocabulário de fácil acesso, ela criava histórias fantasticamente dramáticas e românticas e misteriosas, sem cair na bobeiragem. No seu estilo de escrita, há jogos de linguagem que dão ao leitor um gosto de coisa bem feita e criativa:

“-O que há é o seguinte: - fez dois pontos, e continuou – ontem, quando Jorge saiu, eu notei uma coisa.”(Flag, 2003, p.68);

“Minto: uma outra pessoa parecia inquieta: Jorge.” (Flag, 2003, p.179);

 “(...) compreendi a expressão ‘palidez mortal’, que os romancistas usam tanto, ao ver como ele ficou branco.” (idem)

Contudo, há também alguns escorregões em clichês (como nos trechos abaixo, retirados de Minha Vida):

“nascera entre os dois um desses ódios que só têm solução no crime”;

“aquela pobre alma cultivava na solidão um amor imortal”;

“eu era a única pessoa, ali, que levava no coração todos os presságios”;

“eu devastara, uma a uma, todas as suas ilusões, todas as suas esperanças”;

“com os cabelos desmanchados pelo vento e a paixão que ardia nos seus olhos”;

“estávamos sozinhos, como se fosse eu a única mulher, ele o único homem”;

“um sentimento profético que há no fundo de cada um de nós e se manifesta nos momentos supremos de nossa vida”

 

Ainda:

“Era menina e tinha coração de mulher”;

“Foi a maior humilhação que uma mulher podia sofrer”;

“Ele procurava na tempestade seu perdido amor”;

“Era o meu adeus à vida” (c.f. Fonseca)

 

Apesar do brilhantismo e arrebatamento dos folhetins de Suzana Flag, o que pode perturbar os leitores mais exigentes, principalmente se lidos em forma de livro, é o que chamam na televisão e no cinema de “erros de continuação”. Há personagens que ressurgem do nada quando dados como mortos ou situações como a de Leninha, de Meu Destino é Pecar, que num capitulo tinha febre e não podia andar por causa de escoriações nos pés e no capítulo seguinte está correndo. Berta Waldman dá mais exemplos retirados de O Homem proibido, sobre a personagem Sonia e o Dr.Paulo:

“à página 17 é apresentada ao leitor como uma mulher ‘nem feia nem bonita, que na verdade, não produzia a mínima impressão.’ Já na página 33 se revela a sua condição ‘de mulher nova e linda’. À página 15 o narrador dá a conhecer ao leitor o nome do médico que atende Joyce e que será alvo do amor das primas: Dr.Paulo. À página 20 o narrador apresenta o nome do personagem como se fosse pela primeira vez...”(Waldman, p.79).

 

A explicação para isso vem através da diferença entre romance e folhetim. Neste não há um contrato com a realidade forte como num romance. E não se espera que ele seja lido diretamente como um livro e sim, em pedaços, de acordo com a publicação periódica num jornal.

O folhetim surgiu como uma espécie de casamento entre a imprensa e a literatura, um filho bastardo, renegado (c.f. Fonseca). Seu aparecimento é dado na França, na década de 1830. Desde sua criação, ele foi visto como uma “leitura digestiva”, de entretenimento, sem maiores preocupações estilísticas ou narrativas. Normalmente a temática era a mesma, a velha luta entre o bem e o mal, mas a técnica era cuidadosa na sua construção: era preciso escrever de uma forma que o leitor ficasse pregado até o próximo capítulo. Com a abertura do Romantismo para o melodramático, o folhetim também foi afetado através das paixões exacerbadas e o gosto pelo exótico e sobrenatural; a moral melodramática também apareceu de forma simplificada (a vitória do bem no final) e as personagens melodramáticas estereotipadas entre dois modelos: bondade ou malícia. Os ambientes e temas não eram os do cotidiano. Geograficamente, a história se passava em lugares distantes e cheios de mistérios (o que lembra os textos góticos) ou as ações se reduziam a casas em que todas as personagens habitavam ao longo da trama (como um mundo à parte). O tempo não tinha muita importância, mas a natureza era uma marca de fundo para os sentimentos, como era feito no Romantismo.  

Além disso tudo (que pode ser encontrado em Suzana Flag), os temas de Suzana carregam sempre um tom de morbidez e ironia cínica (principalmente, em relação à figura da mulher), afinal, “a vida como ela é; feia, vil, trágica” é a sua principal temática. Não encontramos o cotidiano em suas histórias, no entanto. As personagens não trabalham, não têm obrigações, parecendo viverem num mundo à parte e à base de emoções primordiais que são aumentadas ao quíntuplo grau. Tudo é trabalhado num plano superlativo, febril, quase mítico, em que as personagens lembram protótipos dos deuses do Olimpo. Esse exagero leva a um estado de “irrealidade” que pode perturbar alguns leitores. Esse tom dado é para não deixar que as coisas passem desapercebidas, como nós tentamos fazer no dia-a-dia. Coisas estas, que não estão diretamente relacionadas à vida das pessoas e sim, sobre as relações emocionais entre pessoas. E apesar de toda uma visão negativa da vida, cheia de mortes, tristezas e infortúnios, chega-se a um final feliz. Quem deve ser punido é punido, quem merece ser feliz é feliz, seguindo a moral tradicional do folhetim.

 

2. As mulheres dentro e fora da literatura nos anos 1940 e 1950

Dentre as milhares de possibilidades temáticas que Suzana Flag trabalhava em seus folhetins: a violência, a figura do aleijado, a luta entre mulheres (tanto entre irmãs quanto entre mães e filhas) pelo mesmo homem, a matriarca má (seja madrasta, avó, mãe, tia...), o incesto, a obsessão pela morte (convocada o tempo todo, seja para ameaçar alguém ou a si mesmo), a família como uma máfia, a vingança, o fanatismo ou obsessão por uma pessoa, etc... acredito que as mais interessantes para se ressaltar aqui são aquelas que estão relacionadas com o que estava acontecendo diretamente na sociedade brasileira e com o papel da mulher dentro desta.

Era uma época de intensa urbanização, industrialização e as mulheres estavam ganhando novos contornos dentro da sociedade. Essa mudança no comportamento feminino já vinha desde as três primeiras décadas do século XX. Dentro da sociedade, contudo, foi difícil a aceitação dessa nova posição que ia além da tríade feminina esposa/mãe/dona-de-casa, formando um quarteto com a posição de trabalhadora. As mulheres começavam a ganhar liberdade e até podiam trabalhar em determinadas profissões como na área de serviços de consumo coletivo (escritórios, comércio ou serviços públicos), enfermeira, professora, médica,... Mesmo assim, havia ainda o peso da imagem da mulher como dona do lar e isso parecia incompatível com uma profissão.

“Lugar da mulher é o lar (...) a tentativa da mulher moderna de viver como um homem durante o dia, e como uma mulher durante a noite, é a causa de muitos lares infelizes e destroçados (...) Felizmente, porém, a ambição da maioria das mulheres ainda continua a ser o casamento e a família.” (Bassanezi, p.624).

 

A entrada da mulher no mercado de trabalho ainda foi motivo de desculpa, segundo um artigo da revista O Cruzeiro, em 1959, para os homens rejeitarem “a idéia de casarem-se porque as mulheres tornaram-se muito independentes.” (idem, p.625). Se as mulheres trabalhavam era porque, muitas vezes, queriam ajudar o marido no sustento da casa e isso era tido como um vexame para o homem (já que era sua função ser o provedor).

Nos anos 1920, as mulheres já haviam passado por semelhante preconceito. Essa nova mulher, que saía sozinha nas ruas, dançava tango e maxixe, foi visceralmente criticada. Um exemplo é um artigo publicado em 1920, na Revista Feminina, assinado pelo poeta modernista (e conservador) Menotti Del Picchia:

“Caso ou não caso? Eis o dilema que arrepia a espinha do celibatário. (...) Os moços, com razão, andam ariscos (...) Será justo que um moço trabalhador e honrado entregue seu nome nas mãos de uma cabecinha fútil e doidivanas (...)?” (c.f.Maluf e Mott, p.373).

 

Ele recebeu uma resposta à altura na edição seguinte sob o pseudônimo de Rosa Bárbara:

“Os ‘rapazes honestos’ a quem os senhores Menotti Del Picchia e seus colegas de crítica se referem, os chamados ‘filhos-de-família’, tomam por elegante e de bom-tom passar suas noites ‘nas casas de divertimentos livres, ao jogo ou nos cafés, embrutecendo o espírito, aviltando a alma e arruinando o corpo pelas bebidas, cocaína, morfina ou cartas de pôquer. É a esses homens pouco educados que as esposas se entregam (...) Ainda teremos o ‘prazer de ouvir e de ver uma moça (...) quedar-se indecisa, mirando e remirando a elegância do pretendente, interrogando-se com prudência... Caso ou não caso?’” (idem).

 

Um exemplo vivo dessa vontade de liberdade é Ercília Nogueira Cobra[4], que publicou (com seu próprio nome) um romance, em 1927, intitulado Virgindade Inútil. A história é da órfã sem dote Cláudia, que foge da pobre fazenda em que vivia para se tornar uma cortesã. Um dia ela fica grávida e não sabe quem é o pai do bebê. Decide criar a criança mesmo assim e sozinha. Dá o nome ao bebê de Liberdade e dá um ensino sem preconceitos à criança. O que talvez tenha chocado mais não foi a história de Claudia em si, mas uma passagem em que é inquirida sobre a aparência da filha. Ela responde que a menina “não se parecia com o pai, mas com uma outra moça, com quem mantivera relações sexuais durante a gravidez...” (Maluf e Mott, p.398).

Se a avó de Suzana, em Minha Vida, soubesse da história de Ercília, com certeza repetiria para a escritora a mesma coisa que diz à neta no início da obra: “Há mulheres que precisam apanhar de homem.” (p.86). Essa visão do homem e o uso da violência para “regular” as coisas a sua volta não eram raras ou primitivas na época. O Código Civil de 1916 relegava a mulher à inferioridade em relação ao marido. Legalmente, segundo o código, o homem era o representante legal da família e administrador dos bens. Se o marido quisesse punir a esposa, poderia usar da violência[5]. Isso não estava diretamente escrito no código, porém, quando uma mulher entrava com uma ação contra seu marido na Justiça e ele desse “motivo” para a violência (ela o traíra ou não o obedeceu ou o injuriou... enfim, de alguma forma, a mulher usurpara o direito dado pelo código ao marido), ela passava de vítima à ré. A razão estava sempre com o homem.

O Código Civil também era para assegurar a ordem na sociedade. Mas havia momentos em que isto estava tão enraizado na mentalidade do marido, que não eram raros os suicídios desesperados porque não estavam conseguindo cumprir seu dever como provedor ou porque alguma derrota moral havia acontecido. O personagem, pai de Suzana, em Minha Vida, é um exemplo disso. Depois de descobrir a traição da mulher (que se matou por causa do amante), acaba tirando sua própria vida numa mistura de dor pela perda (amava ela) e humilhação (por não tê-la controlado como um marido devia fazer).

Uma mulher não podia trair. E se traía não podia dar boa mãe (c.f. Bassanezi). Esse era o pensamento da época que também está nas entrelinhas de Minha Vida, na posição da mãe de Suzana, uma mulher que não cuidava dela nunca e chegava até a odiá-la. As mulheres tinham que controlar seus desejos e não destruir o lar, mesmo que o marido desse suas escapulidas. Desde que eles mantivessem as aparências e continuasse provendo a família, não havia problemas para tal. A articulação traição e fidelidade, tão presente também nos textos, revela por detrás de si a concepção da época que os homens e as mulheres eram vistos como biologicamente diferentes e sua psique estava atrelada a isso. Dessa forma, cada um teria uma missão diferente a cumprir na sociedade seguindo esse determinismo biológico (homem: procura, domina, penetra, possui; mulher: atrai, abre-se, capitula, recebe). Mesmo assim, havia o desejo de civilizar o amor, regrar comportamentos sexuais, e o casamento era uma das formas de se obter isso, além de garantir controle sobre o poder e economia.

Mas mulher exigente e dominadora era sinônimo de má esposa. Em sua vida, o marido era quem devia estar em primeiro lugar. Deveria animá-lo, confortá-lo, nunca discordar dele...  E um casal não deveria ter muitos interesses em comum fora a família. “Qualidades como paciência, espírito de sacrifício e capacidade para sobrepor os interesses da família aos seus interesses pessoais.”, explica o papel da mulher a revista O Cruzeiro, de 1960. (Bassanezi, p.627).

Sacrifícios pessoais e interesses da família: duas questões primordiais nos folhetins de Suzana Flag. A todo momento, as moças são postas à prova, obrigadas a se casarem com que não querem por pressão da família. Porém, vale lembrar que, por exemplo, em Minha Vida e em Meu Destino é Pecar, Suzana e Leninha são obrigadas a se casarem com homens brutais[6] e aparentemente maus e sem caráter (Aristarco e Paulo), mas que se revelam, no fim, os personagens com mais caráter e capazes de poderem fazê-las aceitar seus destinos de mulheres casadas e subservientes aos seus maridos como toda a mulher da época deveria ser.

Em 1924, a Revista Feminina lançou um decálogo sobre como a esposa deveria agir. Em primeiro lugar havia: “Ama teu esposo acima de tudo na terra e ama o teu próximo da melhor forma que puderes; mas lembra-te de que a tua casa é de teu esposo e não do teu próximo.” O último fala sobre o marido que abandona e o fato de ficar esperando ele voltar, pois “és ainda a honra do seu nome. E quando um dia ele voltar, há de abençoar-te”. (Maluf e Mott, p.396). E o mais importante: “Lembrei-me que o casamento é para a vida toda; que nunca mais poderia olhar para outro homem.” (p.149), diz Suzana, a personagem principal em Minha Vida.

Gostava de ser fiel a um marido morto. Isso lhe parecia bonito, doce. Tinha a impressão de que, se casasse, faria uma traição, uma infidelidade. Dizia a todo o mundo, sóbria, digna, castíssima no seu luto:

- Estou bem assim! (Núpcias de Fogo, de Suzana Flag)

 

Os livros tentavam incentivar esse pensamento de mulheres obedientes e apaixonadas em agradar o marido de qualquer jeito, mesmo depois da morte. A mulher deveria sempre se ajustar e abrir concessões ao marido sempre e não esperar um retorno por parte dele. Tinha que ser submissa e pura sempre e se necessário, se auto-humilhar, como as personagens de Suzana Flag. Outra amostra disso é o Teste de Bom Senso, lançado pela revista Jornal das Moças, nos anos 1950. O teste funcionava da seguinte forma: perguntava-se o que a esposa faria caso soubesse que o marido a enganava com uma aventura banal, “como há tantas na vida dos homens” (c.f. Bassanezi). Havia três respostas que podiam ser escolhidas e para cada uma havia uma análise sobre a decisão tomada. As que optavam por criar uma violenta cena de ciúmes eram vistas como as de temperamento incontroláveis e as mais propensas a perder o marido e, ainda explica, “após uma dessas pequenas infidelidades, volta mais carinhoso e com um certo remorso.” Também havia a opção de deixar a casa. A revista avisava que essa era a decisão mais insensata a se tomar. “Que mulher inteligente que deixa o marido só porque sabe de uma infidelidade? O comportamento poligâmico do homem é uma verdade; portanto, é inútil combatê-lo. Trata-se de um fato biológico que para ele não tem importância”. Uma terceira opção era a de fingir ignorar tudo e arrumar-se mais para atraí-lo (“Um homem que tem uma esposa atraente em casa, esquece a mulher que admirou na rua.”, era o ditado da época). Essa é tida como a coisa mais acertada a se fazer. A possibilidade de desquite ou trair em retorno (a maior humilhação que um homem poderia sofrer e que levaria até à morte, sem que ele fosse condenado pela opinião pública ou pela justiça) não eram nem cogitadas, pois em ambas a mulher sofria preconceito.

A distinção entre o papel masculino e o feminino era necessário na época. Principalmente, depois da Segunda Guerra Mundial quando os papéis tinham se mesclado (mulheres trabalhando enquanto os maridos lutavam nos campos de batalha). Agora havia propagandas sobre a reconstrução da família e os deveres da mulher como esposa e mãe. A mulher era treinada para ser dona-de-casa, mãe e esposa, e deveria manter isso tudo com muita maestria. Se o marido lhe era infiel, ou era por acusa do instinto dele de macho ou porque a mulher não estava dando o máximo para agradá-lo. Nunca foi posta em questão a moral do homem que era infiel.

Essas eram as expectativas, aquilo que se queria que as moças seguissem. Mas será que isso realmente era seguido? Ou era existente apenas na literatura de Suzana Flag?

Numa conversa entre Suzana e Noêmia, em Minha Vida, após Hermínia dar um beijo na boca do seu amado Jorge, as duas jovens discutem a ação da outra, mostrando uma divisão comum na época: entre moças de família e as moças levianas.

“-Então, você não viu? Aquilo que ela fez com Jorge? Teve a iniciativa de beijá-lo e na frente de todo o mundo, com todo o mundo vendo! Achei isso bonito, lindo essa coragem! Você não acha, Suzana?

-Depende.

-Como depende?

Pensei um pouco, antes de responder:

-A mulher que faz isso, está tomando uma atitude que só o homem deve ter.

-Bobagem! – interrompeu Noêmia; na sua excitação, levantou-se – Por que a mulher deve sempre esperar que o homem faça? Por que não tomará ela a iniciativa?

-Uma questão de pudor.” (Flag, 2003, p.160).

 

Obviamente, a personagem principal toma a posição da moça de família da época, aquela de moral dominante, que obtinha um casamento modelo, não ficava mal-falada, respeitava os pais, tinha gestos contidos, conservava a inocência sexual, não usava roupas ousadas (nesse caso Suzana usa, pois herdou as roupas da mãe e a avó queria vê-la sedutora para arrumar um pretendente), não saíam com rapazes sozinhas – o casal estava sempre acompanhado pelos “seguradores de vela” - ou não iam para lugares escuros, não permitiam beijos ou abraços intensos. Noêmia representa a moça leviana, um tipo de moça que permitia intimidades, “desviava-se do bom caminho”, tida como a que nunca casaria porque nenhum rapaz gostaria de ter uma moça assim como mãe de seus filhos.

Como os homens não podiam tomar liberdades com as namoradas que eram moças de família, eram incentivados a fazer isso nos prostíbulos ou saírem com moças levianas. Eram raros os casos em que rapazes aceitavam se casar com moças já defloradas. No Código Civil, inclusive, havia um artigo que dizia que existia possibilidade de anulação do casamento se o recém-casado descobrisse que sua noiva não era mais virgem[7].

Nos folhetins de Suzana Flag, a loucura está atrelada ao conhecimento do amor carnal ou proximidades com ele fora do casamento. A perda da virgindade ou o tipo de moça leviana que Noêmia se torna ao longo da história (quando beija Aristarco e quase foge com ele), normalmente, levam a loucura. É tão importante o herói se mostrar honrado no final quanto a heroína ser virtuosa[8]. Num trecho de conversa, Aristarco deixa isso claro à Suzana, sua noiva e sobrinha:

“Eu não admito mulher que tenha passado. Eu quero ser o passado, o presente, o futuro da mulher. Só eu devo existir antes e depois – compreendeu? São uns imbecis esses homens que não se incomodam com o passado. Eu me incomodo – ouviu? – me incomodo e não admito!” (Flag, 2003, p.169).

 

Nesse trecho, como em muitos outros, podemos notar que a sexualidade não está diretamente apresentada nas histórias. O sexo está subentendido no nível da linguagem.

“-Peço-lhe, por tudo que há de sagrado. E depois, há o seguinte: se você não quiser; sabe o que ele faz?...

Fez um suspenso para me impressionar. Eu, realmente, senti o coração apertado, uma angustia nova. Espiamos uma à outra. Vovó baixou a voz:

-Se você não quiser, ele tem outros recursos.

–Quais? – quis saber.

E ela, lacônica:

- A força.

–Como?

–Ele usa a força. Você não se iluda, Suzana, não se iluda. Ele é dono de todas nós. Faz com a gente o que quiser. Mas se você ceder é outra coisa.” (Flag, 2003, p.151)

 

O sexo é como um silêncio ou um “dar a entender”, nunca diretamente chamado ou aparecendo em alguma cena.  Assim também era na vida das moças de família. Algumas tinham acessos à manuais que vinham com revistas. Mesmo assim, expressões como: realidade a ser enfrentada, missão a ser cumprida, necessidades do casamento, obrigações conjugais, familiaridades, intimidades, liberdades, aventuras... eram usadas no lugar da palavra sexo ou relações sexuais. A palavra mais ousada utilizada foi na revista Querida, que escreveu “relações física”. Somado a isso, não se comentava o prazer que a mulher poderia ter proporcionado pela relação. Isso poderia ser muito perigoso se sabido e não poderia ser objetivo para a mulher. Sua função não era obter prazer próprio, mas dar prazer ao marido.

Apesar de toda essa construção moralista da época, o tema principal em Suzana Flag, por mais piegas que possa parecer para nossos olhares “modernos”, continuava sendo o amor, ou a tentativa de encontrar o amor num casamento feito sem amor. Não era um amor qualquer. Era um amor dentro de limites, que não fizesse a moça de família se tornar uma moça leviana (como Leninha, que fica na tentação com Maurício):

“As mulheres vivem para o amor. Romantismo e sensibilidade eram, nos Anos Dourados, características tidas como especialmente femininas (...) Amor romântico sim, mas domesticado! Nada de paixões, que violem as leis da moral e da ordem. O amor só seria aceitável se não rompesse com os moldes convencionais de felicidade ligada ao casamento legal e à prole legítima (...) Assim como tornou-se comum se dizer que o casamento só deve ocorrer quando houver amor, também era tido como certo que o amor verdadeiro e digno é aquele feito de juízo e razão. A paixão, por outro lado, é o amor impossível, loucura passageira ou efervescência do juízo, sentimento insensato que jamais poderá se concretizar numa união legal.” (Bassanezi, p.618).

 

Algumas passagens exprimem bem essa idéia:

“Todo amor é eterno. Se não é eterno, não era amor” (em Meu destino é pecar),

“O grande caso de d. Margarida fora Maurício, o pai de Lúcia. Deste gostara, realmente, com uma dessas paixões fanáticas, exclusivas, que uma mulher não esquece.” (em Núpcias de Fogo),

“A mulher pode dizer que não, mas compreende o crime de amor; quer dizer, não o considera crime. Gosta dos homens ou, antes, dos amores assim violentos, selvagens – gostam sim!” (Flag, 2003, p.95),

“Amor infeliz é melhor do que nada.” (Flag, 2003, p.203)

 

Peça fundamental dessa relação entre casamento e amor é o beijo como ato consumador e não o sexo. No início de Meu Destino é Pecar, Leninha se recusa a beijar Paulo, porque “eu sempre quis ter um namorado, um noivo, um marido, que eu amasse, que eu pudesse beijar na boca....” mas ela não amava ele. Outro momento decisivo em relação ao beijo como um ato íntimo e pessoal é numa conversa entre as irmãs de Jorge e Suzana:

 “Maria Helena, pelo que dava a entender, achava um fenômeno uma moça que não tivesse sido beijada antes do atual namorado. Caí na asneira de expor meu ponto de vista a respeito:

 -Acho beijo uma coisa muito séria.

Disse isso com uma gravidade, um tom definitivo que, ainda hoje, me faz corar de vergonha. Elas me olharam de alto a baixo:

 -Séria por quê?

–Tão natural!

Noêmia deu-me conselhos:

-Seja mais moderna!

–Que é que tem de mais o beijo?

Engasguei, sem ter o que dizer. Afinal, a minha concepção de amor era tão diferente! Como dizer àquelas duas, explicar o que eu achava? Elas não compreenderiam nunca que um homem e uma mulher que se amam se julgam Adão e Eva, se supõem os criadores da família humana. Elas jamais veriam o amor assim, absoluto, exclusivo, cheio de eternidade. Noêmia teve uma confissão espontânea:

-Pois eu, minha filha, se fosse contar os beijos que já me deram!

Seria verdade aquilo ou brincadeira? Subitamente, sentia-me inferior diante daquela moça que possuía uma experiência amorosa, conhecimento de carícias com que eu nem sonhava. Maria Helena, também. Esta foi mais longe:

-A coisa mais comum é uma moça ter vários namorados, ao mesmo tempo. A gente pode ter namorado e flertar com outros.

–Mas isso é traição! –teimei, na minha inocência obstinada.

–Que o quê!

–Traição coisa nenhuma! Você parece criança!

Usei o argumento desesperado:

-O meu caso com Jorge, por exemplo. Se eu tiver outros namorados, além dele – está certo? Ou não está?

As duas me olharam, com surpresa. Evidentemente não esperavam por esta pergunta, ficaram sem jeito e se entreolharam. Noemia falou:

-Bem, aí seria diferente.

 –Como diferente?

–Porque você e Jorge vão se casar, já há um compromisso, é outra coisa. Isso muda a situação. Agora, se fosse um simples namoro, você teria o direito de flertar, claro. Por que não? Antigamente é que a moça não podia fazer isso, aquilo, tudo ficava feio. Minha mãe contava –imagine- que, no seu tempo, a mulher não podia nem cruzar as pernas em público. Todo o mundo dizia logo que ela era assanhada e coisas parecidas. Tudo mudou!” (Flag, 2003, p.91-92)

 

Isso mostraria porque Suzana merecia o final feliz na ilha deserta com Aristarco e não, Noêmia. Apenas as moças de família se casam e têm um final feliz.

Será? Suzana Flag nunca escreveu sobre o que acontecia depois que os pares amorosos se acertavam... sobre a vida cinza do dia-a-dia.

 

 

3. Quem era, de fato, Suzana Flag?

 

Eu posso começar esta história dizendo que me chamo Suzana Flag. E acrescentando: sou filha de canadense e francesa; os homens me acham bonita e se viram, na rua, fatalmente, quando passo. Uns olham, apenas; outros me sopram galanteios horríveis, mas já estou acostumada, graças a Deus; há os que me seguem; e um espanhol, uma vez, de boina, disse, num gesto amplo de toureiro: “Bendita sea tu madre!". Lembrei-me de minha mãe que morreu me amaldiçoando e senti um arrepio, como se recebesse, nas faces, o hálito da morte. Bem: acho que o meu tipo é miúdo; não demais, porém. E foi isso talvez que levou certo rapaz a me dizer, pensativo: “Se você cantasse, daria uma boa madame Butterfly”. Há mulheres decerto menores do que eu. Mas gosto de ser pequena, de dar aos homens uma impressão de extrema fragilidade e de me achar, eu mesma, eternamente mulher, eternamente menina. Às vezes, nem sempre, tenho uma raiva de umas tantas coisas que existem em mim e que atraem os homens. E, nessas ocasiões, desejaria ser feia ou, pelo menos, desinteressante, como certas pequenas que impressionam um homem ou dois, e não todos. O que acontece comigo é justamente o seguinte: eu acho que impressiono, senão todos, pelo menos a maioria absoluta dos homens. Mesmo homens de outras regiões, quase de outro mundo, se agradam de mim. Inclusive aquele marinheiro norueguês, alvo e louro, que me olhou de uma maneira intensa, de uma maneira que me tocou tanto quanto uma carícia material. Tenho vinte e poucos anos e devo dizer, não sem uma certa ingenuidade, que vivi muito mais, que tive experiências, aventuras, que mulheres feitas não têm. Para vocês compreenderem isso, precisavam me conhecer como eu sou fisicamente, isto é, ver os meus olhos, a minha boca, o modo de sorrir, as minhas mãos, todo o meu tipo de mulher. Se vocês me conhecessem assim — eu poderia dizer: “Esta é a história de minha vida, esta é a história de Suzana Flag”... Mas é preciso advertir: vou contar tudo, vou apresentar os fatos tais como aconteceram, sem uma fantasia que os atenue. Isso quer dizer que o meu romance será pobre de alegria; poderia se chamar sumariamente: “Romance triste de Suzana Flag”. (Flag, 2003, p.9-10).

 

Assim Suzana Flag começa a sua “autobiografia”. Uso a expressão entre aspas, pois em nada (tanto estilo quanto narrativa) Minha Vida se diferencia de qualquer outro romance da autora. Inclusive, apesar dela fazer questão de ressaltar “vou apresentar os fatos tais como aconteceram, sem uma fantasia que os atenue”, na frase seguinte já encara esses fatos e seu livro como constituintes de um romance (tradicionalmente, oposto à biografia por ser sinônimo de ficção). Essa escorregadela nos faz acreditar ainda mais que Suzana não escreveu sobre sua vida: o suicídio dos pais (e a dramática cena em que a mãe lhe roga uma praga antes de morrer), seu complicado noivado com Jorge (amante de sua mãe e filho bastardo de sua avó), seu casamento com o tio de criação Aristarco, a fuga para a ilha numa lancha, o quase rapto pelo aleijado Cláudio... (pontos comuns na sua ficção). Minha Vida é tão difícil de ser considerado biográfico (num sentido tradicional, sinônimo de verdade), que mesmo quando foi lançado em 1946, depois do sucesso de Meu destino é pecar, as leitoras de O Jornal, fãs de Suzana, tiveram dificuldades aceitar a história como Verdade.

Mesmo assim, sem revelar sua identidade, Suzana continuou fazendo sucesso. Minha Vida saiu em O Jornal por três meses seguidos, seguindo os passos do famoso folhetim anterior. Saiu em formato livro no mesmo ano e vendeu muito, mas uma vendagem menor do que anterior Meu Destino é Pecar.

Não se sabe dizer quem era Suzana Flag, o que viveu realmente para escrever esses folhetins que fizeram muito sucesso entre as mulheres da época e ajudou a reerguer O Jornal de Assis Chateaubriand. Nem aonde Leão Gondim de Oliveira, diretor de O Jornal, conseguiu os folhetins de Suzana. Só podemos tentar imaginar quem era a mulher por trás da máquina de escrever e se perguntar se seu nome era realmente Suzana Flag. O nome dela, também, em inglês, pode ter sido sugerido por Gondim ou pelo diretor geral Freddy Chateaubriand. Nessa época, textos assinados por nomes estrangeiros ganhavam uma credibilidade maior. Ou se ela usava o pseudônimo como uma forma de proteção a sua família.

Isso era comum no final do século XIX e no início do século XX, quando mulheres usavam pseudônimos para poderem escrever e não serem mal-vistas ou terem suas famílias de alguma forma prejudicadas pelo que escreviam. Assim fizera a escritora Maria Benedicta Câmara Bormann, nascida numa prestigiada família e casada com o Ministro da Guerra, José Bernardino Bormann. Ela assinava sob o nome Delia, lançando no jornal O Paiz, em finais do século XIX, Carta a Sindol, sobre uma moça que recusa se casar com um bom partido escolhido pela família e Lésbia, história de uma jovem que se separa do marido tirano e decide escrever sua vida. Temas que poderiam comprometer seu marido, pois mostravam uma nova mulher que ia se delineando na sociedade brasileira oitocentista: uma mulher mais independente e que se achava no direito de saber para si própria o que era melhor, ao invés de deixar que esse tipo de decisão ficasse à cargo do pai ou do marido. Porém, essa mulher ainda demoraria a ganhar sua real fundamentação na sociedade brasileira. E os anos em que Suzana Flag viveu, 1940 e 1950, foram apenas uma época em que essa independência era enfraquecida através de conselhos em revistas e das pressões sociais, querendo ainda manter a mulher presa ao marido e a família, pensando primeiro neles e só depois em si mesma.

Por que os folhetins de Suzana Flag faziam sucesso? Porque contavam de uma forma fácil (muito próximo à oralidade), divertida e bem escrita histórias rocambolescas, aventuras amorosas levemente apimentadas e recheadas de sentimentos extremos. Era uma forma de entretenimento barato para as mulheres, pois vinham nos jornais que os maridos compravam, e ajudavam a sair da rotina entre arrumar a casa e cuidar dos filhos e do marido.

Os folhetins de Suzana formaram uma espécie de sustentáculo de venda. Cada capítulo diário trazia um final eletrizante ou revelador, que ficava em suspenso até o dia seguinte, quando era preciso comprar o jornal novamente para ler a continuação. Isso elevou vertiginosamente as vendas de O Jornal, que estava entrando em colapso nos últimos anos. De três mil exemplares vendidos, passou para seis mil quando Suzana começou a publicar Meu Destino é Pecar. Depois o número dobrou e em quatro meses chegou quase a 30 mil exemplares vendidos.

Em junho de 1944, com o final de Meu destino é pecar, foi decidido que ele seria publicado em livro pela Edições O Cruzeiro (que eram baratas), vinculadas a revista de sucesso O Cruzeiro. A propaganda foi massiva tanto nos jornais e revistas do grupo Chateaubriand quanto nas rádios. A primeira edição foi de oito mil exemplares, o que não foi o suficiente. Em finais de junho, o livro já havia vendido 12 mil exemplares e em outubro atingiu a casa dos 50 mil. Segundo Freddy Chateaubriand, foram vendidas mais de 300 mil cópias de Meu Destino é Pecar, antes do título ter sido vendido à editora Martins, em São Paulo, em 1946, onde chegou a 12 edições.

Meu Destino é Pecar ainda virou novela de rádio (rádio de Chateaubriand, obviamente), porém, teve que passar por algumas adaptações para ser repassada, transformando-se quase numa história leve para mocinhas. Na época, o rádio era um instrumento que reunia toda a família na sala (o que o televisor fez no seu aparecimento, pois hoje cada um tem uma tv no seu quarto e as pessoas não mais precisam se reunir para ver uma mesma coisa) e era preciso haver uma certa censura. Por mais que Suzana não deixasse claro o teor sensual de suas obras, o tema adultério aparecia sem qualquer máscara de beleza. O rádio, naquela época, como nos lembra Ruy Castro, nem podia colocar no ar a expressão “amante da música” por possuir a palavra “amante”, então, como fazer com uma história em que o tema adultério era fundamental para o desenrolar da trama? Realmente, foi preciso transformar a história toda. A mesma censura foi feita no filme de 1952 de Manuel Peluffo. A palavra amante foi trocada por amiga.

Em setembro do mesmo ano, começou a ser publicado outro folhetim de Suzana Flag, intitulado: Escravas do Amor. Esse era a história de uma herdeira, Malu, que vai se casar com o jovem Ricardo. No dia do pedido de casamento, Ricardo aparece morto misteriosamente e Malu era a única pessoa que estava com ele. Enquanto vai sendo investigada a morte de Ricardo, suicídio ou assassinato, a mãe de Malu revela que a grande paixão de Ricardo era ela e não a filha. Esse é o início da história que saiu não apenas em O Jornal, mas em todos os jornais de Chateaubriand. Em seguida, com o término do folhetim, saiu o livro.

Entre 4 de agosto e 12 de setembro de 1948, foi publicado Núpcias de Fogo, a história de duas irmãs, Lúcia e Dóris, que amam o mesmo homem, na revista O Cruzeiro e depois em O Jornal.

As senhoras mais velhas eram as mais fascinadas pelas histórias da escritora. Conta-se que um dia, 200 senhoras invadiram a redação de O Jornal, que ficava na avenida Venezuela, para reclamar um erro cometido pela gráfica. Foi solto um capítulo por engano e elas queriam saber como a história da véspera de Meu destino é pecar tinha continuado. O jornal acalmou as senhoras publicando o capítulo faltante no dia seguinte.

Eram escritas, incrivelmente, catorze laudas datilografadas, uma média de 420 linhas, por dia. Que tipo de mulher teria tempo para escrever isso numa época em que ainda vivia-se sob a ideologia de que a mulher tinha que ficar em casa cuidando da família? Criam-se assim, perguntas sobre Suzana: era ela uma esposa “relaxada” ou uma solteirona convicta?

Dentre as milhares de cartas para Suzana que a edição do jornal recebia, houve, certa vez, a de um presidiário que se apaixonou por ela. Suzana lhe mandou uma resposta insinuando que estava comprometida. Não entrou em detalhes se era casada ou se ia se casar. A história terminou como num romance de Suzana: happy end. O presidiário foi obrigado a se conformar com tal e chegou a convidá-la para ser madrinha do seu casamento na prisão.

Poderíamos levantar outra hipótese à respeito da vida pessoal de Suzana Flag. A sua primeira aparição teria sido disfarçada sob o “pseudônimo” de Maria Lúcia, em O Globo Feminino. É um artigo, escrito à maneira Flag, que comentava a famosa peça de Nelson Rodrigues, Vestido de Noiva, logo depois da sua estréia. Será, então, que Suzana, na verdade se chamava Maria Lúcia? E como ela era fisicamente? Bonita como a descrição inicial em Minha Vida ou o contrário: baixinha, gordinha e de óculos, uma Maria Lúcia ao invés de uma Suzana Flag? Dizem que os leitores acreditavam na sua beleza e que achavam que podia ser algo entre Ingrid Bergman e Marlene Dietrich.

Seja como for, em 1949 Suzana Flag sumiu e apareceu uma colunista e conselheira amorosa chamada Myrna no Diário da Noite, irmão de O Jornal, comandado por Freddy Chateaubriand. Suzana Flag só reapareceu anos mais tarde no jornal A última hora, de Samuel Wainer. Era 1951 e ela lançava O homem proibido. A história, muito parecida com o início de Minha Vida, contava a história de Joyce cuja mãe se suicida e o pai some, sendo obrigada a ficar com uma prima sete anos mais velha. Tudo parecia começar a se resolver quando surge um belo médico que faz com que a relação entre as primas se complique. O ponto clímax é quando Joyce fica temporariamente cega.

Essa história é considerada por alguns críticos como a mais cuidada no arranjo das palavras. Provavelmente, porque fazia tempo que Suzana não publicava nada e devia estar com saudades de escrever. Será que parara por causa do casamento? À pedido do marido que achava que estava relegando as tarefas domésticas com essa “mania terrível” de escrever? Ou será que era porque acabara de ter o primeiro filho e decidira ficar alguns anos tomando conta da cria até que o impulso literário a chamasse de volta às páginas?

O último folhetim de Suzana, A Mentira, saiu no semanário colorido Flan (que durou apenas nove meses), de Wainer, lançado em abril de 1953. O nome de Suzana Flag estava entre expressivos nomes da literatura como Joel Silveira, Otto Lara, Vinicius de Moraes, João Cabral de Melo Neto, Dorival Caymmi, Hélio Pellegrino,... Era a história de um pai obcecado por sua filha caçula, Lúcia. Um dia, a menina de 14 anos, revela que está grávida, o que é um choque para a família (e para o leitor).

Ainda sob o comando de Samuel Wainer, Suzana assinava o correio sentimental Sua lágrima de amor. Depois disso, Suzana Flag desapareceu, sem deixar vestígios, mantendo o mesmo mistério que conseguiu sustentar capítulos a fio nos seus folhetins.

 

 

Conclusão: Um pseudônimo para Suzana Flag

 

Suzana Flag conseguiu manter o anonimato ao longo dos anos. Sua vida, um mistério que só pode ser encontrado diluído nas páginas de seus romances. Seu destino era amar a literatura e se tornar parte dela, fosse como personagem principal de Minha Vida ou fosse como um mito nos corredores dos jornais cariocas. Não importa. O que importa para nós em Suzana é seu legado literário pelo qual viveu. Como dizia Fernando Pessoa: “viver não é necessário; o que é necessário é criar”.

Se tivéssemos que revelar a verdadeira identidade de Suzana Flag, teríamos muitas dificuldades por causa dessa brincadeira entre ficção e realidade que constrói a sua vida e obra. Porém, há indícios que nos levam a crer que Suzana Flag está de alguma forma relacionada a Nelson Rodrigues, o famoso, ululante e fluminense “anjo pornográfico”. Os dois trabalharam nos mesmos jornais e na mesma época. Outra prova disso está nas linhas do jornal Ultima Hora. Depois que Suzana parou de escrever sua coluna sentimental, surgiu uma outra coluna, com teor e temas muito parecidos com os de seus folhetins. A vida como ela é... era sinônimo de sucesso, principalmente entre leitores masculinos, com sua escrita jornalística e irônica, mas similar a de Suzana em alguns pontos e frases. A partir disso só uma conclusão pode ser tirada: Nelson Rodrigues era pseudônimo de Suzana Flag.

 ***

 

Bibliografia:

BASSANEZI, Carla. Mulheres dos anos dourados. In: História das Mulheres no Brasil, PRIORI, Mary (org.). São Paulo: Editora Contexto e Editora Unesp, 2000.

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994, 42ª edição.

CASTRO, Ruy. O Anjo Pornográfico – a vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Cia. das Letras.

FLAG, Suzana. Meu Destino é Pecar. Coleção Prestígio. Rio de Janeiro: Editora Ediouro.

FLAG, Suzana. Minha Vida. São Paulo: Cia. das Letras, 2003.

MALUF, Marina e MOTT, Maria Lucia. Recônditos do Mundo Feminino. In: História da Vida Privada no Brasil. República: da Belle Époque à Era do Rádio. SEVCENKO, Nicolau (org.). São Paulo: Cia. das Letras, 1998.

TELLES, Norma. Escritoras, escritas, escrituras. In: História das Mulheres no Brasil. PRIORI, Mary (org.). São Paulo: Editora Contexto e Editora Unesp, 2000.

WALDMAN, Berta. A cena e o cio nacional. In: Toward Sócio-CriticismL Luso-Brazilian Literatures.REIS, Roberto (org.). Tempe: Arizona State University, 1991.


Sites:

FONSECA, João Barreto. Folhetim: o sensacional a conta-gotas, o bastardo fatiado, o sonho seriado. Site: http://reposcom.portcom.intercom.org.br/bitstream/1904/4360/1/NP2FONSECA.pdf (Visitado em: 27/10/2007)

E-Dicionário de Termos Literários, melodrama: http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/M/melodrama.htm (Visitado em: 27/10/2007)



[1] Há um catalogo com informações sobre algumas escritoras brasileiras do século XVIII ao XX, organizado pelo Grupo de Trabalho Mulheres e Literatura, da ANPOLL (Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Letras e Linguística) que pode ser acessado pelo site: http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/index1.htm.

 

[2] Muitas pessoas acham que A Moreninha (1844) é de fato o primeiro romance romântico brasileiro. Mas há críticos que tomam O filho do pescador (1843) de Antônio Gonsalves Teixeira e Souza como o primeiro, mesmo com algumas falhas na sua narrativa romanesca.

 

 

[4] A história de Ercília em si já daria um bom romance. Ela era filha de uma família decadente de fazendeiros. Fica órfã e é educada para se tornar esposa e mãe dedicada. Foge de casa e é encontrada e internada numa instituição para “moças perdidas”. Depois se torna professora e sob o pseudônimo de Suzy se torna dona de uma “casa de mulheres” em Caxias do Sul (Rio Grande do Sul).

 

[5] Numa cena de Minha Vida, comenta-se a relação violência e amor e a necessidade de algumas mulheres em sentirem-se ou aceitarem ser dominadas por homens: “-Mas isso é bom; é bom para o amor, que a mulher tenha medo do homem. Eu –está ouvindo?- só gostarei de um homem que, um dia, se eu der motivo, possa me partir em dois, me matar. Este homem eu amarei toda a vida! É preciso que eu tenha medo dele!” (Flag, 2003, p.95).

 

[6] “Mas havia, talvez, no fundo de cada uma de nós, mulheres, uma espécie de prazer, secreto, inconfessado, agudo, diante da cena bestial (...) um pouco desse deslumbramento que a mulher sente diante da força bruta.” (Flag, 2003, p.117).

 

[7] Havia medo, tanto na sociedade, quanto em Meu Destino é Pecar, da mulher não conseguir controlar seu impulsos e desejos e acabar sendo seduzida pelo galã irresistível. Interessante pensar que tanto nesse folhetim de Suzana Flag quanto no Minha Vida, os dois protótipos de galãs/canalhas, Maurício e Jorge, acabam morrendo no final.

 

[8] No primeiro capítulo de Escravas do Amor, a personagem principal, Malu, se mostra o protótipo da moça de família, mas com uma certa “maldade” que sempre aparece atrelada a figura feminina nos folhetins de Suzana: “Tinha um pequeno corpo, frágil, leve, elástico e belo Queria que até lá ele nada conhecesse do seu corpo, a não ser que o pudesse adivinhar através do vestido. Isso era uma maldade inteligente de mulher, uma maneira de não se banalizar aos olhos do namorado. Até aquele momento não fora beijada nem por Ricardo, nem por ninguém. Podia dizer: "Eu nunca fui beijada!". E não adiantavam os comentários das primas: "Que é que tem beijo? Ora, Malu". Solange ia mais longe: "Beijo não quer dizer nada!".”