quarta-feira, 30 de julho de 2008

1. SER OU NÃO SER... NÃO É MAIS UMA QUESTÃO, É UM FATO:

Um mundo em fragmentação (culturas, gêneros, classes, etnias, nacionalidades...), sem bases sólidas fornecidas por uma centralização, gera hoje uma incessante busca por uma identidade (o que ser ou não), algo fixo, que retire o homem desse Caos pluriforme em que está numa aparente deriva, sob o julgo da moira[1]. O que se está vivendo, considerado uma etapa típica da pós-modernidade, é um processo que foi tomando forma durante a modernidade a partir da centralização do sujeito e ganhou força no século XX. Essa mudança pode ser pensada a partir da própria palavra modernidade. A sua origem vem da palavra modernus, que apareceu somente no século VI. O radical mod- ou med- é o mesmo de palavras como medomai (em grego significa pensar, ter em mente) ou medicina, medicamentum, modicus (este em latim: o que está na medida, modesto, medíocre). O termo, de acordo com Emile Benveniste e citado por Adriano Rodrigues (link[2]), indicaria paragem ou estancamento de um curso desregrado (hyrbis[3]) dos fluxos do corpo e do comportamento ou dos acontecimentos. É um “retorno à justa medida” para conter o que depois poderia ganhar proporções perigosas e incontroláveis. Se moderno viria desse estancamento da hybris, colocando a sua centralidade no sujeito e na racionalidade, o pós-moderno seria deixar correr de novo, abrir as comportas para a hybris, isto é, a desmedida, o excesso, o grotesco, a mistura de formas (hibridismo). Aspectos estes que foram encontrados ao se analisar de perto e com bastante acuidade o homem moderno que não se via mais como integrado a uma Totalidade e sujeito apenas a si mesmo, tomando-se como medida de tudo e de todos.

Para o pós-modernismo chegar a esse ponto de hybris, foi preciso, antes de qualquer coisa, que o homem ultrapassasse o métron (a medida humana, a si mesmo). Nietzsche escreve sobre isso ao falar sobre o trágico em O nascimento da tragédia. Para o filósofo alemão, das duas forças que existem, a apolínea[4] está relacionada ao princípio de individuação, um processo de criação do indivíduo realizado pela experiência da medida e consciência de si. Contudo, a brilhante e radiosa aparência apolínea é uma proteção contra a sombra, ao mesmo tempo, que é uma ocultação por ser uma aparência, uma ilusão. Dessa forma, o princípio de individuação estaria atrelado a uma ilusão ao tentar esconder determinados traços que o cortariam ao meio e quebrariam com sua concepção íntegra e brilhante de um homem como a sua própria totalidade, concepção essa trabalhada no pensamento iluminista. (link Machado[5]).

Ou seja, após a dessacralização do mundo, durante o Iluminismo, o homem criou para si uma visão de individuo centrado, unificado, racional, com uma identidade e capaz de ser a medida de todas as coisas, fonte de sentidos para o mundo e para si mesmo. Porém, como explica Deise Mancebo em Modernidade e Produção de Subjetividades, essa concepção de homem se tornou problemática:

O sujeito psicológico é dividido, sua autonomia é apenas ilusória, sua vida racional e consciente subentende uma desconhecida dimensão inconsciente e irracional. Produz-se um paradoxo, conforme Salem (1992), o eu reina, apresenta-se sacralizado, mas não é dono de si. Simmel (1977), Sennet (1988) nos fornecem elementos conceituais e históricos para a compreensão deste aparente paradoxo. A análise por um lado, do racionalismo iluminista, com um certo acabamento, na cultura francesa, do século XVIII e, de outro, do romantismo alemão, do século seguinte, apresenta-nos a oposição entre dois tipos de individualismos, ou duas facetas do paradoxal homem moderno: o indivíduo jurídico da cidadania e dos direitos e deveres universais e o indivíduo psicológico, interiorizado e propenso ao auto-cultivo. (link Mancebo[6])

 

O homem iluminista possuía a racionalidade como ordem e contra esse preceito surge o homem romântico buscando uma identidade através de relações (outrora cortadas no Iluminismo) com a natureza e a irracionalidade (sentimentos e instintos e inconsciente). Dessa forma, surgem dois tipos de indivíduos criados pela modernidade: o cientista e o poeta, que geram hoje o homem político (o homem-partido, hoje discutido por vários teóricos). Saiu-se da subjetividade coletiva do século XVIII para a subjetividade individual do século XIX[7], o gérmen da pós-modernidade. Mas ambos representavam, como deixa claro Mancebo, a igualdade e a busca de uma singularidade absoluta (princípios da modernidade).

É ainda no século XIX que aquilo que antes era visto como a totalidade pelo pensamento iluminista cedeu lugar a uma “imanência secular”, o que abriria as portas para uma visão aprofundada e radical do individualismo:

significado dos fenômenos e a ‘verdade’ de cada um não se referiam a qualquer ordenação prévia, mas lhes era imanente, captável no imediatismo das aparências. Neste último universo - da imanência secular - o ‘eu’ passa a ser a única totalização possível, uma totalização fugidia, uma busca eterna e inalcançável. Mesmo o mundo externo passa a ser considerado como uma construção, ou melhor, uma descoberta que se dá, através de uma lente interna, de dentro do homem para fora. Tem início uma era de ‘subjetivismo radical’, de ‘individualismo desenfreado’ e de ‘busca da auto-realização individual’. (link Mancebo).

 

Com o mundo social e o cultural e o de si mesmo se tornando construções do olhar subjetivo, o homem sentiu-se perdido, incerto das coisas. Transformou-se num ser melancólico, com sensação de fin-du-siécle, sem Deus e sem Autor. E a hybris (relacionada à outra pulsão nietzschiana, a dionisíaca), a desmedida ocultada foi ressurgindo por debaixo da erosão da figura apolínea iluminista, desintegrando o eu fixo e único, durante esse processo de desvalorização do mundo e de si mesmo. Para que a melancolia pudesse passar e fosse restituída a reconciliação de pessoas entre si ou com a natureza (à procura de uma harmonia universal, de uma Unidade, fugindo da divisão, em busca de uma totalidade que não está em si, mas está no Todo) seria preciso o estado dionisíaco de embriaguez, o estado alterado de si, a sua desmedida, a pós-modernidade[8].

Uma das respostas causadas por essa mudança dentro da própria modernidade que gerará a pós-modernidade é a necessidade de uma identidade (de um ser ou não ser), de estar atrelado a alguma raiz (afinal, a tradição foi banida pela modernidade como ponto central do homem). Essa busca não é coisa recente. Já havia desde Platão uma tentativa de apreender uma identidade nas coisas. Ou quando nações se viam em crise como momentos de repressão ou derrota (a Alemanha derrotada por Napoleão, o Risorgimento na Itália, a guerra entre França e Prússia em 1870, etc) como Gumbrecht nos lembra em seu texto Minimizar Identidades: “emerge o desejo de identidade, identidade talvez que nunca existiu, mas que você busca no momento de derrota.” (Gumbrecht, p.121).[9]

Mas o sentido ontológico que se buscava na Antiguidade e nessas épocas de construção de uma identidade nacional foi perdido, de acordo com Gumbrecht e foi-se notando, com o surgimento da psicologia e a idéia de processos de identificação que a criação da identidade através da posição do outro, do olhar[10].



[1] Espécie de destino cego.

 

[3] Híbrido, palavra que tem aparecido na maior parte dos textos acadêmicos atuais, normalmente, relacionada à palavras como multiplicidade, pluralidade, heterogeneidade, sincretismo, desterritorialização, construção/desconstrução de identidades, interculturalidade, marginalidade, gêneros e intertextualidade dentro dos estudos da literatura, vem do grego hybris (desmedida, o excesso, o ultrapassar as fronteiras – entre divino e humano, geralmente - pelo qual os heróis trágicos eram punidos) e significa um ultraje por causa da miscigenação (mistura) que violava as leis naturais na época da Grécia Antiga (o fato de hoje considerarmos a palavra híbrido sinônima de irregular, anormal, grotesco, anômalo vem por causa dessa definição grega). Atualmente não estamos preocupados em ultrapassar fronteiras entre elementos, nem com a miscigenação, pois vivemos um período de pós-modernidade em que a alteridade e a valorização do diverso são os deuses.

 

[4] O deus Apolo é utilizado como símbolo para essa concepção por sua relação com o Oráculo de Delfos em cuja entrada está escrita a seguinte frase: Conhece-te a ti mesmo.

 

[6] Modernidade e produção de subjetividades: http://www.fae.unicamp.br/br2000/trabs/2010.doc

 

[7] Época em que o grotesco ganha importância e aparece no prefácio de Cromwell de Victor Hugo.

[8] É importante ressaltar aqui a pós-modernidade como um processo do estado dionisíaco e não o seu resultado.

 

[9] Naquela época não havia a visão de construção de uma identidade como hoje temos. Para as pessoas daquela época o que faziam era retomar identidades que já existiam num sentido de essência, ontológico.

 

[10] “O território interno de cada um não é soberano; é com o olhar do outro que nos comunicamos com nosso próprio interior.” (Souza, 2006 a, p.66).

 

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