domingo, 5 de outubro de 2008

O fantástico Encarnação de José de Alencar


Ao terminarmos de ler Encarnação, último livro completado por José de Alencar antes de morrer em 1877 - publicado postumamente em 1893 - logo nos deparamos com um sentimento de estranhamento. Não por causa do teor fantástico que nos carrega pela novela – fato raro na literatura brasileira – mas sim, por ser da autoria de José de Alencar, o que gera mais incerteza ainda por parte dos críticos e de nós, leitores, acostumados a romances alencarianos idílicos e cheios de heróis e heroínas capazes de fazerem tudo pelo amor ou pelo que acreditam ser o certo.

De acordo com Todorov, o fantástico representa um tipo de literatura em que na narrativa há um acontecimento que não pode ser explicado de acordo com as leis do nosso mundo. Então, leva-se em conta de que se trata ou de uma ilusão ou de algo que não temos o conhecimento (por exemplo, o diabo. Ele pode ser uma ilusão de uma personagem ou apenas um ser existente, mas que temos pouco contato). Dessa forma o fantástico nos cria o sentimento de incerteza diante do que nos deparamos, uma hesitação diante de algo aparentemente sobrenatural. Depois de passado esse pequeno instante,   encontramo-nos ou com o estranho ou com o maravilhoso. No primeiro caso – e no qual enquadro, a princípio, Encarnação - as leis da realidade explicam o acontecimento inusitado. E no segundo, novas leis são admitidas para se ter uma resposta.

Na literatura brasileira, o mais conhecido livro com tom fantástico é de Álvares de Azevedo, Noites na Taverna. Se compararmos, contudo, a obra literária de Álvares de Azevedo com a de José de Alencar, notamos que colocá-los num mesmo patamar seria algo tão estranho quanto um acontecimento sobrenatural num livro fantástico. Já que um, além de ter sua obra mais concentrada na poesia ultraromântica, parece se enquadrar melhor por causa do teor melancólico, soturno e, às vezes, até diabólico, presentes em suas linhas e que são necessários à narrativa fantástica. Enquanto o outro nos carrega pelas matas virgens de um Brasil recriado, por honradas áreas rurais e pelos costumes dos salões da Corte. Não que seja estranho o uso do fantástico nos romances românticos, pelo contrário. No meio das fronteiras tolerantes do romance se encaixa o fantástico. O romance romântico tornou-se ideal para caracterizar os anseios e sentimento dos leitores que eram, na sua maioria, jovens de ambos os sexos ou profissionais liberais que queriam se encontrar nas páginas dos livros,  além de ser ideal para comportar o desejo de exprimir novos sentimentos, de ser uma atividade intelectual para a construção nacional, descrevendo costumes e abrindo-se para a sensibilidade e para o espiritualismo.

As narrativas fantásticas existem por ser uma forma de tratar assuntos que seriam proibidos ou mal-vistos pela sociedade como: incesto, homossexualismo, poligamia, necrofilia, vícios, psicose, individualismo acentuado, desejo de desacordo com normas, sadismo, desvios sexuais,... assim descrita por Todorov: “a má consciência desse século XIX positivista.”. Estes temas que aparecem em vários pontos da obra de Álvares de Azevedo, mas que não são recorrentes em José de Alencar, já que este possui uma linha de pensamento, explicada mais tarde na introdução de seu livro Sonhos d’Ouro. Neste, escreve que sua pena pende para a criação de uma literatura brasileira, não mais colonizada pela literatura alheia e capaz de lutar contra a invasão de outros costumes. O que não podemos deixar de é que talvez Alencar tenha, exatamente no fim de sua obra literária, com o advento do Realismo em 1875 - escola da qual se considerava parte, apesar das críticas de Joaquim Nabuco -, notado esse tom de crítica universal ao positivismo e dele se feito para escrever uma obra mais madura e psicológica do que as que já havia escrito – como Lucíola e Senhora. Isto é, depois de muito ter analisado a superfície do Brasil e seus costumes, decidiu que já podia se embrenhar nas profundezas do lado psicológico das personagens, pois o público também já estaria preparado para isso.

Antes, no início de sua circulação no Brasil, os romances em si não podiam levantar ante uma sociedade pouco urbanizada os estudos de complicações psicológicas como faziam outros autores daquela época na Europa já acostumada com séculos de literatura. Naquela época escrever era uma missão para o autor, uma forma de mostrar o que estava errado na sociedade e como corrigi-lo. Principalmente para um filho de padre que, apesar do intelecto rico, não tinha muito dinheiro e por causa disso foi, muitas vezes, excluído de rodas sociais e recusado como pretendente. Sendo assim, quando pensamos em José de Alencar, nos vem à cabeça esse instrutor rígido e, como diz Antônio Cândido, um sociólogo, que em Senhora e Lucíola se mostra irritado com a sociedade, cheio de um moralismo romântico que se alonga sobre coisas como casamento por dinheiro e prostituição, mas no fim salva a dignidade dos protagonistas que de redimem.

A trajetória literária de Alencar ainda é cheia de heróis corteses e honrados, paisagens rurais, índios idílicos, vida burguesa com sua moda e regras, enredos de amor – às vezes ingrato entre homem e mulher e centrado no orgulho e ciúmes - e casamento... mas ainda crê nas razões do coração - nota-se pelo prólogo de Cinco Minutos: “o coração é sempre verdadeiro, não diz senão o que sentiu, e o sentimento qualquer que ele seja tem a sua beleza”. Resumindo, a obra alencariana, poderíamos dizer, varia em torno de dois eixos, que ao longo dos romances vão se repetindo e sendo mais aprofundados: complicações sentimentais e idealização heróica. O fantástico entra aqui como uma ferramenta que Alencar precisaria para ajustar as suas críticas à sociedade sem ser prejudicado por censuras como foi com a sua peça Asas de um Anjo – ele foi censurado por ter escrito uma peça com o tema da prostituição como em Dama das Camélias, representada na mesma época e sem retaliações. Alencar explica que isso se deu porque a sociedade brasileira não tinha medo de ver as chegas da cultura alheia, mas quando se tratava da própria, parecia querer evitar, só se interessando pelo que vem de fora.

Interessante notar que Encarnação não foi o primeiro escrito fantástico de Alencar. Quando chegou em São Paulo para o curso de preparação para a faculdade de Direito, trazia na bagagem, como relata em Como e porque sou escritor, um molde de um romance “merencório, cheio de mistérios e pavores; esse, o recebera das novelas que tinha lido. Nele a cena começava nas ruínas de um castelo, amortalhadas pelo braço clarão da lua; ou nalguma capela gótica frouxamente esclarecida pela lâmpada, cuja luz esbatia-se na lousa de uma campa.” Mas ficou muito tempo sem seguir o modelo de Byron, como faziam os colegas de turma, principalmente Álvares de Azevedo, por achar-se já suficientemente melancólico e taciturno.

Não podemos dizer que Encarnação está totalmente destacado dos outros escritos de Alencar. Na verdade, ele apenas utiliza um novo recurso – o gênero fantástico – para bater nas mesmas penas de antes: uma sociedade que pouco se importa com a dor alheia, a divisão do homem (indivíduo versus grupo, gênio versus padrões sociais), o amor como a cura de todos os males e a idealização excessiva do amor familiar – notamos que Amália tem todas as suas vontades feitas pelos pais no início do livro – e da paixão. Alencar utiliza, de forma prática, aquilo que era a idéia principal do romance: arrancar os homens do cotidiano e levá-los para encontrar milagres. No entanto, a forma como isso é apresentado é o que faz a diferença e torna essa uma das obras mais incríveis de Alencar, a ponto da própria crítica querer ignorá-la por sair dos parâmetros comuns do autor.

Tanto em Encarnação quanto nas outras obras, a preocupação com o perfil da mulher, com a psicologia feminina ainda se mantém bastante presente. A heroína ainda é cândida, firmes, inteligente, com espírito crítico e revelando-se o duplo do herói, a confirmação de seus desejos - através da personificação da primeira mulher - tornando-se um ato de abnegação pelo amor, ascendendo ao sublime heróico – a mulher ideal que renuncia a própria identidade de acordo com as normas opressoras da sociedade para ver o marido feliz. O herói ainda é bom, cheio de dever e consciência mais forte que a paixão, ainda é romântico, encarando a imagem da virtude quase desumana, um anjo triste e melancólico afastado do mundo que não o entende e atormentado por mágoas passadas que o impedem de viver o presente, lançando-se, assim, a evasão - em meio a um santuário à ex-esposa. O passado ainda é elemento condutor da sua narrativa e o critério de revelação psicológica, fazendo com que as personagens ainda sejam escravas da vida anterior, o que cria um mistério. E o amor ainda é a forma de mudar – tanto Amália, que deixa de ser mimada e pensar em si mesma como uma criança egoísta - curar e restaurar a sanidade – o amor de Amália é tão forte que a transforma de menina mimada para Julieta e desta para a Amália que tanto queria ser enxergada como mulher por Hermano e o resgata do passado de uma vez por todas. O tema do amor é muito recorrente no fantástico, principalmente o amor maior que a morte, o amor intenso que cria um estranho social como Hermano.

Todorov anuncia que o que interessa ao crítico não é o que a obra tem em comum com o resto da literatura, mas o que tem de específico, então, vejamos não mais os temas ou personagens comuns com as outras obras de Alencar, mas aquilo que a diferencia das outras.

A estudiosa Ruth Brandão alega que Hermano sofre de uma incapacidade de amar, pois durante o próprio casamento ele idealizava Julieta – encantado ainda com a persona da Lucia de Lammermoor – e depois Amália. Hermano, de certa forma, mata Julieta antes dela morrer por causa dessa idealização. Julieta, na verdade, teria sido não apenas uma forma de preencher um vazio decorrente de uma parte negada de si ou desejada no indivíduo e projetada no outro, mas um pretexto para Hermano não amar. E o vazio criado por Julieta só poderia ser preenchido pelo único ser que lhe fosse homogêneo ou mundo desabaria. Nesse caso, a própria Julieta, mas como ela não existia mais, Amália ocupa esse lugar quando se transveste de Julieta. Uma Amália que entra na aventura para acabar com o tédio que é a sua vida, por desejar narcisicamente um amor igual ao que viu entre Hermano e Julieta quando pequena pela janela da casa deles (das Unheimliche, sentimento de estranhamento que norteia toda sua trajetória no romance fantástico) – narcisismo este apenas satisfeito com a identificação com a imagem narcísica, neste caso, Julieta, e a aceitação do próprio suicídio.

A renúncia da heroína por amor não é novidade em Alencar, contudo, a renúncia de Amália parece carregar um teor que beira a loucura, assim como a de Hermano. Ela interioriza a Julieta ideal para fazer Hermano confundi-la até se apaixonar por ela e realizar, assim, um casamento de fato – nota-se que dá a entender que os dois não consumaram o casamento até o penúltimo capítulo, depois do incêndio na casa que purifica a relação dos dois. E eles têm uma filha, o que não aconteceu no casamento com Julieta, que não frutificou, isto é, havia a individualidade, o egoísmo, a idealização, que barreiras que não permitiam o crescimento do relacionamento e que por fim foi aniquilado pelo próprio desequilíbrio proporcionado pelos sentimentos dos dois.

O que soa fundamentalmente fantástico na obra não é a loucura de Hermano, que é a sua paixão na radicalidade, ou sua reclusão num passado morto - sabemos que vivia na inconsciência da morte da amada e que a forma dela estava tão mesclada com a sua, que dizia que havia morrido parte dele com ela, porém, que ainda podia senti-la presente -  mas sim o surgimento das estátuas que não lembram Julieta diretamente, mas captam a sua alma, como diria Hermano. Esse surgimento inusitado e louco representa a recusa do vazio da morte da esposa, uma forma de manter vivo um ideal filosófico muito presente no romantismo – amar unicamente uma pessoa, até depois da morte. Morte esta, que pode ser vista como um ato de punição. O amor à morte é uma punição ao desejo sexual excessivo, diriam os teóricos do fantástico, a sensualidade desenfreada cria sentimento de culpa. Vale lembrar que Julieta morreu quando grávida. Talvez por isso Hermano tenha tido medo de consumar seu casamento com Amália.

Junto com Amália – ou com qualquer outra personagem numa história fantástica – vamos pisando em ovos até descobrir o que realmente está por detrás dos fatos estranhos que rondam a vida de Hermano. Acontecimentos estes que separados não parecem trazer nenhum mistério que contradiga uma lei natural, mas que juntos se tornam incomuns. Questões estas que muitas vezes tem um caráter ambíguo, que não são suscetíveis de acontecer e acabam, por causa disso, gerando medo e perplexidade por parte do leitor. Essa hesitação situada entre o real e o imaginário muitas vezes trabalha com temas como a loucura, que é a ruptura do limite entre espírito e matéria, a multiplicação da personalidade. Para o louco não há separação entre o eu e o mundo, criando uma fusão cósmica, vivendo num presente eterno, sem passado ou futuro. É um desvio, uma negação do universo. É comum nas novelas fantásticas o aparecimento de tendências neuróticas desagradáveis manifestadas. Segundo Penzoldt, “para muitos autores, o sobrenatural não era senão um pretexto para descrever coisas que não teriam nunca ousado mencionar em termos realistas.”, como a questão sexual acima analisada.

A ambigüidade, que é chave-mestra para a narrativa fantástica, está presente em diversas partes da obra. Como no aparente interesse de Amália pelo Dr.Henrique Teixeira, pelas mulheres que aparecem na casa de Hermano e que na verdade são estátuas, na conversa com Amália de como arrumar uma forma dos dois se separarem, ambigüidade esta que aparece até na nomeação de Hermano (às vezes conhecido como Carlos, outras como Hermano e outras tantas como H. de Aguiar). É com um truque de linguagem que autor cria o sentimento de hesitação no leitor e conseqüentemente, a narrativa fantástica. Ele espera que o leitor leve ao pé da letra o sentido figurado.

Poe diz que a novela deve ter efeito único e que este deve aparecer no final. E é exatamente este que nos traz mais um sentimento de ambigüidade ao terminarmos de ler o livro, pois nos perguntamos se Encarnação é fantástico-estranho – parece sobrenatural mas no fim há uma explicação racional para tudo - ou fantástico-maravilhoso - não é bem explicado e sugere algo de sobrenatural no final? Ficamos na dúvida porque Alencar, magistralmente, faz com que o fruto do amor de Hermano e Amália seja uma menina muito parecida com Julieta e que leva o nome dessa mesma, como se nela houvesse encarnado. Podemos concluir, de acordo com Louis Vax, que Alencar muito bem soube trabalhar o fantástico, pois “a arte fantástica ideal sabe se manter na indecisão.” Estava certo Marchado de Assis quando escreveu que: “José de Alencar escreveu as páginas que todos lemos, e que há de ler a geração futura. O futuro não se engana”, e acrescento, fica-se na dúvida ou ignora-se.

Seguindo a linha do futuro e atingindo o ponto onde se bifurca entre o ignorar e a dúvida; se José de Alencar tivesse vivido um pouco mais, poderia também não só ter escrito um livro fantástico como Encarnação, mas um romance de ficção científica, o primeiro escrito por um brasileiro. Segundo Lira Neto, na biografia de Alencar, O Inimigo do Rei, quando Alencar viajou à Inglaterra, teria ficado desnorteado com a Revolução Industrial à pleno vapor e isso teria lhe dado a idéia para um romance intitulado A legenda do impossível. A história era sobre uma “máquina diabólica” que tinha os cabelos e barbas feitos de “intrincadas estruturas mecânicas”. Seja como for, isso ficou apenas anotado nos papéis que deixou para trás ao partir para o futuro glorioso e nos deixar nas mãos um passado mais glorioso ainda. 

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