domingo, 5 de outubro de 2008

Letra X Imagem ou Letra = Imagem ?

Frederic Jameson explica que vivemos na época da “superabundância de imagens” ou na  “coleção de imagens, enorme simulacro fotográfico”, na qual a imagem teria se transformado na principal forma de diluir mensagens. Calvino vê de forma negativa essa “inflação de imagens”. Esse excesso foi combatido no Minimalismo dos anos 60, que reduzia ao máximo os elementos da própria arte, criando uma arte mais pura e livre da mistura com outras artes. No entanto, na contemporaneidade do século XXI, estamos envolvidos por manifestações híbridas e múltiplas que põem em questão os suportes tradicionais da arte, mostrando a impossibilidade da palavra tentar descrever aquilo que as imagens e sons podem mostrar. Dessa forma, o texto se anexa as outras artes, fazendo ver e a imagem nos dando a entender. Ao mesmo tempo, vivemos o paradoxo, pois estamos na era do vídeo, da reprodução eletrônica, e temos medo de que a imagem ameace a cultura do livro. Sendo assim, a literatura se encontra no conflito existente entre letra e imagem, procurando nesta tensão um reencontro com sua realidade própria sem, necessariamente, ser um encontro mimético e representativo. Contudo, essa relação desequilibrada, de diferença entre imagem e letra só apareceu mais fortemente na arte moderna. Antes, na época de Horácio, poesia e pintura eram como artes irmãs.

 

A idéia de artes irmãs, isto é, poesia como pintura, para compreender e estudar melhor uma e a outra, apareceu pela primeira vez em Simonides de Cós e depois em Plutarco, que escreveria em De Gloria Atheniensium que “a pintura é uma poesia silenciosa; a poesia é uma pintura que fala”, antes de chegar nas mãos de Horácio. Em Ut Pictura Poesis, Horário defende a irmandade entre poesia (leia-se textos imaginativos) e pintura, pois expressam as mesmas coisas, apesar de ser por meios diferentes. Isso pode ser visto quando, por volta dos séculos VIII e VI a.C. os gregos começaram a usar uma escrita alfabética (antes ela era silábica) e cantigas, tragédias, rapsodos, etc. começaram a aparecer escritos. Inclusive, no século VI a.C., Psístrato e seu filho Hiparco juntaram vários episódios recitados por aedos e transformaram os escritos no que hoje conhecemos como a Ilíada e a Odisséia. Dessa forma, a “poesia” começou a aparecer como a pintura, uma arte e as imagens, que apareciam na oralidade funcionando como um processo mnemotécnico para se lembrar dos versos (por isso, a repetição excessiva de imagens, como “a aurora de dedos rosados”) vão poder, com a escrita, se libertar desse aprisionamento mental para darem asas a liberdade de criação.

 

Essa comparação interartística para Wellek e Warren, no livro Theory of Literature, de 1956, não contribui em praticamente nada para a compreensão da literatura. Da mesma forma, pensavam outros estudiosos anteriores a eles. Como Leonardo Da Vinci, que achava que as imagens poéticas se comparadas com as imagens da pintura eram “débeis e perecíveis, meros signos”. No tratado Della Pintura, de 1435, Alberti define princípios teóricos sobre a especificidade da pintura, rompendo, assim, com a simetria das artes irmãs. Em 1766, Gotthold Efraim Lessing, no início de Laocoonte, começa observando que Simonides era um homem de “fine feeling”, contudo, não era crítico ou filósofo. Lessing separa as artes da destacando suas características da seguinte forma: a pintura é sincrônica, um fenômeno visual, pertencente ao espaço, estática e não-progressiva e é imediatamente entendida e apreciada, enquanto a poesia é diacrônica, um fenômeno auditivo, pertencente ao tempo, dinâmica e progressiva. Por fim, recomenda que a poesia e a pintura não sejam confundidas e que são melhor praticadas e apreciadas como duas artes vizinhas. Assim, as artes plásticas não devem se arriscar com a narrativa, isto é, deve se abster das idéias para não criar formas alegóricas grotescas, podendo representar ações por alusões corporais. E a literatura, a quem as idéias pertencem, só pode descrever corpos evocando-os através das ações das personagens.

 

No século XIX, com o aparecimento do Impressionismo e da pintura abstrata, elementos literários serão por vez eliminados da pintura, ou seja, a imagem ganhou independência das explicações textuais já que era valorizado como força expressiva a representação direta e imediata da descrição visual. Com essa ruptura com a linguagem, pintores modernistas se concentram no desenvolvimento puramente visual (formas, cores, superfícies), levando ao ápice “pintura sem objeto”. No famoso quadro de Magritte do cachimbo encontramos essa dissociação entre imagem e linguagem, definindo a Alta Modernidade. Esse processo de separação é apresentado e analisado, mais tarde, por Foucault, no livro Isto não é um cachimbo. Foucault, explica que dois princípios reinaram sobre a pintura ocidental, do século XV ao XX. O primeiro: a separação entre representação plástica e referência lingüística, de modo que os dois sistemas não podem se cruzar ou se fundir, e um acaba subordinado ao outro (ou texto regrado por imagem - quadros com livros, inscrições... - ou imagem regrada por texto - livros com desenhos), dessa forma, o signo verbal e a representação visual não são jamais dados de uma vez, havendo uma hierarquia. O segundo princípio coloca equivalência entre fato da semelhança e afirmação do laço representativo. Estes fatos da semelhança e da afirmação reintroduziram o discurso numa pintura (antes havia tensão entre signos lingüísticos e elementos plásticos). A Modernidade com Kandinski mostrou que se aparece um enunciado é para contestar a identidade manifestada na figura, mostrando que as palavras são da mesma substância que as imagens.

 

Dessa forma, hoje em dia é impossível isolar literatura de uma cultura predominantemente visual (cultura da imagem). A mistura de gêneros e a quebra hierárquica nas artes e na cultura do início da Modernidade não são mais uma transgressão e sim, uma condição para a produção artística. A obra dialoga com a visualidade da imagem, no desenvolvimento do suporte gráfico para a imagem-texto da escrita virtual e na abordagem visual dentro da narrativa. Os avanços da contemporaneidade mostraram que não há mais arte puramente visual nem verbal. E a tensão entre elas pode ser vista como uma interação constitutiva para a representação em si, sendo essas heterogêneas, como os meios de comunicação. “Nenhum signo artístico se apresenta como puramente verbal nem como puramente visual. O texto depende hoje mais do que nunca da sua qualidade visual, e da sua materialidade escrita, do seu meio gráfico, da sua edição ou da sua projeção. No caso dos hipertextos se tornou praticamente impossível distinguir entre o elemento visual e textual do signo, o que cria uma nova dimensão de significados não redutível nem ao sentido literal da linguagem nem a semelhança mimética da imagem.(...) não podemos tratar a imagem como ilustração da palavra nem o texto como explicação da imagem. O conjunto texto-imagem forma um complexo heterogêneo fundamental para a compreensão das condições representativas em geral.” Esse impacto na literatura das novas tecnologias pode registrar mudanças na experiência de mundo (tempo e espaço), e sujeito como condição da identidade social. 

 

Esta aproximação entre literatura e imagem existe por causa do reconhecimento da separação entre artes visuais e literárias, rompendo com proposta de Horacio (que entendia a diferença entre as artes como apenas do modo de expressão material sem afetar o significado essencial da obra – a poesia era uma imagem em palavras e a imagem um poema em traços e cores, dessa forma, as artes podiam ser avaliadas comparativamente.). No Alto Modernismo, o quadro Isto não é um Cachimbo, manifesta derrota dessa semelhança comparativa (o texto não explica mais o que a imagem diz, e a imagem não ilustra mais a palavra/ o texto e a imagem continuam relacionados, não pela semelhança, mas pela “não-relação irreduzível entre aquilo que a imagem diz e aquilo que o texto mostra.”). A contemporaneidade está vinculada a não-relação do texto e da imagem que se infiltram de qualquer forma e que, ao invés de criar uma redundância, criam um outro significado já não explicável só por um meio ou pelo outro, mas sim, pela relação da não-relação dos dois.

 

Podemos notar que o desenvolvimento da escrita está vinculado à imagem desde Grécia antiga e mesmo a Modernidade tentando separá-las, nunca conseguiram por completo. Século VI a C surgiram textos que o contorno externos desenhavam instrumentos de guerra e caça. Na Idade Media, narrativa visual e imagens narrativas eram muito próximas, havendo manuscritos com superposições de escrita e imagem e a troca de seus lugares. Na poesia barroca surgem textos configurados como altares, cruzes, centros, sendo mais do que ornamento tipográfico. Cubistas, futuristas, dadaístas, concretistas trabalharam com essa relação entre letra e imagem. E hoje surgiu, com a linguagem eletrônica alterando nosso relacionamento com o texto, tornando-o móvel e efêmero, formas de intermedialidade na literatura digital conhecida como interficções (termo de Robert Simanowski, Interfictions. Vom Schreiben im Netz, 2002), misturando som, imagem e escrita, criando, como Heidrun Krieger Olinto diria, uma literatura performática.

Nenhum comentário: